quarta-feira, 16 de março de 2011

A ÂNSIA PELO HEROÍSMO


“...o instinto comum da humanidade pela realidade (...) sempre achou que o mundo era, essencialmente, um palco para o heroísmo.” William James

Pobremente nossa sociedade segue em frente como se algumas das verdades vitais sobre o homem ainda não existissem. Simplifica a complexidade de problemas que podem engendrar grandes mentiras e retardar o descobrimento de verdades capazes de ajudar os homens a adquirirem uma certa compreensão sobre o que acontece com eles – os reais problemas.

Trago à tona o problema da ânsia da natureza humana pela atividade heróica.

Sigmund Freud já havia percebido que cada um de nós repete a tragédia do Narciso da mitologia grega, ou seja, estamos perdidamente imersos em nós mesmos. Se nos preocupamos com alguém, em geral é conosco, antes de qualquer outra coisa. Como disse Aristóteles: “Sorte é quando o sujeito ao seu lado é que é atingido pela flecha”. E dois mil e quinhentos anos de história não alteraram o narcisismo básico do homem.

Um dos aspectos mais mesquinhos do narcisismo é acharmos que praticamente todos são sacrificáveis, exceto nós mesmos. É essa confiança que diz ao homem para continuar lutando para sobreviver com todas as forças, não importa quantos à nossa volta estejam morrendo.

Como percebe Ernest Becker, é esse narcisismo que faz com que, nas guerras, homens continuem marchando até serem atingidos por tiros à queima-roupa: no fundo do coração, o indivíduo não acha que ele vai morrer, apenas sente pena daquele que está ao seu lado.

Este estudo caminhará pelos instintos, infância e história cultural do homem para compreender sua natureza heróica. 

Nosso organismo tem a certeza de estar pronto para encher o mundo sozinho, ainda que nossa mente se acovarde com a ideia. Para Freud, este inconsciente (instinto, primeiramente) não conhece a morte ou o tempo: nos seus recessos orgânicos fisioquímicos mais íntimos, o homem se sente imortal.

O homem não aparenta ser capaz de “evitar” o seu egoísmo, parece vir de sua natureza animal. Através de inúmeras eras de evolução, o organismo tem precisado proteger a sua integridade, assim, uma vez dada sua identidade fisioquímica, ele dedicou-se a preservá-la.

Podemos observar de forma análoga esta natureza em um dos principais problemas do transplante de órgãos quando o organismo se protege contra a matéria estranha, mesmo que se trate de um novo coração que pode mantê-lo vivo. O próprio protoplasma abriga a si mesmo e adestra a si mesmo contra o mundo, contra invasões de sua integridade. Parece deleitar-se com suas próprias pulsações, expandindo-se no mundo e ingerindo parte dele.

Se tomássemos um organismo cego e mudo e lhe déssemos uma consciência de si mesmo e um nome, e fizéssemos com que ele se destacasse na natureza e soubesse que era inigualável, teríamos o narcisismo. No ser humano, a identidade fisioquímica e a sensação de poder e atividade tornaram-se conscientes.

No homem, um nível prático de narcisismo é inseparável da auto-estima, de um sentimento básico de valorização de si mesmo. Ou seja, nas palavras de Alfred Adler:  

"...Aquilo de que o homem mais precisa é sentir-se seguro em seu amor-próprio...”

Mas  o homem não é apenas uma gota cega de protoplasma errante, mas sim uma criatura com um nome e que vive em um mundo de símbolos e sonhos, para além da matéria. Seu sentido de amor próprio se constitui mediante de símbolos, seu tão prezado narcisismo se alimenta de símbolos.

Há uma ideia abstrata de seu próprio valor, composto de sons, palavras, imagens, perceptível no ar, na mente, por escrito. Isso significa que a ânsia natural do homem pela atividade de seu organismo, seu prazer em incorporar e expandir-se podem ser alimentados ilimitadamente no terreno dos símbolos e, com isso, passar à imortalidade.

O organismo solitário pode expandir-se em dimensões de mundos e épocas sem mover um só membro físico; pode incorporar a eternidade em si mesmo, ainda que morra ofegante.

Na infância, vemos a luta pelo amor-próprio na sua fase menos disfarçada.

A criança não tem vergonha daquilo de que mais precisa e que mais quer. Todo o seu organismo proclama em voz alta as exigências de seu narcisismo. E essas exigências podem tornar a infância um inferno para os adultos envolvidos, em especial quando há várias crianças competindo ao mesmo tempo pelas prerrogativas da ilimitada auto-extensão, aquilo que Ernest Becker chama de “significância cósmica” – expressão importante para onde o assunto está se encaminhando.

Normalmente os pais preferem minimizar a importância da “rivalidade entre irmãos”, como se fosse alguma espécie de subproduto do crescimento, um pouco de competitividade e egoísmo de crianças que foram mimadas, que ainda não cresceram a ponto de adquirirem uma natureza social mais generosa.

No entanto, ela é demasiado absorvente e incessante para ser apenas uma incômoda aberração. Ela expressa o âmago do ser: o desejo de se destacar, de ser algo na criação. E quando se combina o narcisismo natural com a necessidade básica de amor-próprio, tem-se uma criatura que precisa se sentir objeto de valor fundamental: a primeira no universo, representando em si mesma a vida toda.

É esta a razão da luta diária e, em geral, atormentadora entre irmãos: a criança não admite ficar em segundo lugar ou ser desvalorizada, muito menos excluída. Então surgem os diálogos: “Você deu a ele o brinquedo maior!”, “Você deu a ele mais suco!”, “Tome um pouquinho mais, então.” “Agora ela é que ganhou mais suco do que eu!”, “Você deixou ela dirigir um pouco, e não eu.” “Está bem, dirija um pouco agora”. “Mas agora agente já está, ela dirigiu mais!”. E assim por diante. Um animal que adquire sentimento de valor mediante símbolos é obrigado a se comparar, em todos os mínimos detalhes, com aqueles que o cercam, para ter certeza de que não vai ficar em segundo lugar.

Assim, a rivalidade entre irmãos é um problema crítico que reflete a condição humana básica: não é que as crianças sejam maldosas, egoístas ou dominadoras. Elas simplesmente expressam muito abertamente o trágico destino do homem: justificar-se desesperadamente como um objeto de valor primordial do universo, de destacar, ser um herói, dar a maior contribuição possível para a vida no mundo, mostrar que vale mais do que qualquer outra coisa ou pessoa.   

Quando notamos como é natural o homem lutar para ser um herói, como é profunda a penetração disso em sua constituição evolutiva e organísmica e com que franqueza ele o demonstra quando criança, fica ainda mais curioso o grau de ignorância que a maioria de nós tem, conscientemente, daquilo que realmente queremos e de que precisamos.

Já na nossa civilização, em especial na era moderna, o heróico parece grande demais para nós, ou nós parecemos pequenos demais para ele.

Diga a um jovem que ele tem o direito de ser herói, e ele ficará desentendido.

Disfarçamos a nossa luta acumulando números numa conta bancária para refletir em particular o nosso senso de valor heróico. Ou tendo apenas uma casa um pouco melhor no bairro, um carro maior, filhos mais inteligentes. Enquanto isso, pulsa a ânsia pela excepcionalidade cósmica, disfarçada em empreendimentos de menor amplitude. E quando alguém admite que leva o seu heroísmo a sério, provoca calafrio na maioria de nós.

O congressista norte-americano Mendel Rivers, por exemplo, que deu à máquina militar doações orçamentárias astronômicas, disse ser o homem mais poderoso desde Júlio Cesar. Podemos nos horrorizar com a estupidez do heroísmo dos seres terrestres, tanto de César como de seus imitadores, mas a culpa não é deles. Ela está na maneira como  a sociedade arma os seus lugares. A ânsia pela heroísmo natural, e admiti-la é um gesto de honestidade. Se todo mundo a admitisse, é provável que isso liberaria uma força tão represada que seria devastadora para as sociedades atuais.

O fato é que a sociedade é, e sempre foi assim, um sistema de ação regido por símbolos, uma estrutura de condições sociais e de papéis, de costumes e regras de comportamento, destinada a servir de veículo para o heroísmo dos seres terrestres.

Cada cultura tem um sistema de heroísmo diferente. O que os antropólogos chamam de “relativismo cultural’,  na verdade é a relatividade dos sistemas de heróis em todo o mundo.

Um sistema cultural é uma dramatização de seus heróicos sobre a terra. Cada sistema cria papéis para a realização de vários graus de heroísmo: do “alto” heroísmo de um Churchill, um Mao, ou um Buda. Mais "abaixo” está o heroísmo do trabalhador das minas de carvão, do empregado, do proletário - simples, habitual, o terreno do heroísmo desempenhado pelo trabalhador de mãos calejadas que sustenta uma família mesmo na fome e na doença.

Não importa se o sistema de heroísmo de uma cultura é francamente mágico, religioso e primitivo ou secular, científico e civilizado. É, de qualquer forma, um sistema de heróis míticos, no qual as pessoas se esforçam para adquirir um sentimento básico de valor, para serem especiais no cosmo, utéis para a criação, inabaláveis quando ao seu significado. Adquirem esse sentimento escavando um lugar na natureza, construindo uma edificação que reflita o valor do homem como um templo, uma catedral, um totem, um arranha-céu ou uma família que se estenda por três gerações.

Isso fica claro quando Norman O. Brown diz que a sociedade ocidental, mesmo a partir de Newton, por mais científica ou secular que alegue ser, ainda é tão “religiosa” quanto qualquer outra. Eis o que ele queria dizer: a sociedade “civilizada” é uma esperançosa crença de que a ciência, o dinheiro e os bens façam com que o homem valha mais do que qualquer outro animal. Nesse sentido, tudo aquilo que o homem faz é religioso e heróico e, no entanto, corre o perigo de ser fictício e falível.

Umas das perguntas mais importantes que o homem pode fazer a si mesmo é até que ponto ele sabe daquilo que faz para se tornar um herói?

Talvez assim haveria uma arrasadora liberação de verdade. Faria com que os homens exigissem que a cultura lhes desse o que lhes é devido, um sentimento básico de valor humano como contribuintes sem igual para a vida cósmica.

Mas as sociedade atuais só poderiam conseguir tal objetivo quebrando suas próprias fundações. Só as sociedade que chamamos de “primitivas” proporcionam esse sentimento a seus membros. O homem de hoje só está pedindo o que historicamente lhe foi roubado pela era industrial.

Mas a verdade em relação à necessidade de heroísmo não é fácil de ser admitida por ninguém, nem mesmo pelos próprios indivíduos que querem ter reconhecidas suas reinvidicações. Nos tornar cientes daquilo que fazemos para alcançar o heroísmo é um dos principais problemas auto-analíticos da vida – percebidos por Nietzsche, Freud, Otto Rank, entre outros.

Os atos heróicos dos humanos são de uma impulsividade cega que os consome. Nas pessoas apaixonadas, trata-se de um grito à procura de glória, tão isento de crítica e tão reflexo como o uivo de um cachorro.

Nas massas mais passivas de homens medíocres, ela fica disfarçada enquanto eles desempenham, humildes e queixosos, os papéis que a sociedade designa para seus atos heróicos. Permitindo que através de promoções e uniformes-padrões estes se sobressaiam pouco.

E todo este heroísmo é dissimulado pelo “lado nobre”.
O homem dará a vida pela sua pátria, sua sociedade, sua família. Tomará a decisão de atirar-se sobre uma granada para salvar seus camaradas; ele é capaz da mais alta generosidade e do mais elevado auto-sacrifício. Mas tem que sentir e crer que aquilo que está fazendo é verdadeiramente heróico, transcendente ao tempo e extremamente significativo.

A crise da sociedade moderna está precisamente no fato de que os jovens não acreditam que este plano seja verdadeiro para os problemas de suas vidas e de sua época. Estamos vivendo uma crise de heroísmo que atinge todos os aspectos de nossa vida social. Há os que abandonam o heroísmo da universidade, outros, o da atividade econômica e de uma carreira, alguns, o da atividade política. 

"...Surgem os anti-heróis, aqueles que seriam indivíduos heróicos à sua maneira..."

Como Charles Manson com a sua “família” especial, aqueles cujos atormentados atos heróicos atacam o sistema que deixou de representar o heroísmo estabelecido em consenso.

Viemos de uma sociedade onde os jovens já haviam percebido uma grande verdade sócio-histórica. Através da perversa e destruidora atividade heróica da Alemanha de Hitler ou o simples, degradante e tolo ato heróico da aquisição e exibição de bens de consumo, no acúmulo de dinheiro e de privilégios que agora caracteriza sistemas de vida inteiros, tanto capitalistas como soviéticos.

E esta crise da sociedade também é a crise de tudo que a constitui, tal  como a religião organizada. A religião já não é válida como um sistema de heróis, e por isso a juventude cada vez mais a despreza.

Se a cultura tradicional fica desacreditada como atividade heróica, a igreja que apóia essa cultura se desmerece automaticamente. Se a igreja, por outro lado, preferir insistir na sua própria atividade heróica, poderá verificar que, em pontos cruciais, terá que agir contra a cultura, recrutar jovens para serem anti-heróis em relação às formas de viver da sociedade em que vivem. Este é o dilema da religião, e de qualquer tipo de ideologia ou simulacro desta era.

O termo “crise” significa “a hora de mudança”. Se ainda estamos em crise é pelo fato de que embora todos já tenham percebido o problema, ainda, nada foi feito.

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