A ideia de que nada deve se interpor entre os pais e seus filhos é o núcleo dos “valores de família”. Mas o que ninguém parece perceber é que os pais não são donos de seus filhos, mas são - ou ao menos deveriam ser - aqueles que prezam pelo seu bem-estar.
Muitas pessoas defendem que a criança na barriga da mãe tem o direito à vida e não pode ser abortada, mas ninguém se importa que, quando nasça, ela perca esse direito ficando totalmente entregue ao que quer que os pais queiram fazer com ela.
Os pais não são os detentores da verdade em relação aos filhos e temos o direito de intervir nas relações entre eles quando são prejudiciais. Mas quando os pais ouvem isso e são questionados sobre o que eles sentem e que é difícil defender com a razão, eles ficam irritados, defensivos, e à procura de algo atrás do qual se esconder e apoiar. E, para isso, nada melhor do que um valor que – exatamente por ser um valor – é inquestionável. Dizem: “Somos os pais, e ninguém pode dizer como devo agir com meu filho, pois eu sei o que é melhor para ele.”
Segundo o artigo 14 da Convenção dos Direitos da Criança, toda criança deve ter direito à “liberdade de pensamento, consciência e crença”. Mas o mesmo estatuto que defende a busca por autonomia diz que essas pessoas, ainda em processo de desenvolvimento, necessitam de orientação para alcançarem sua maturidade cívica e social. Os pais, desse modo, têm o direito de “orientar” os filhos no que dirá respeito aos seus pensamentos e crenças.
Mas, sendo assim, como essas crianças desenvolverão seus próprios pensamentos? Crianças são extremamente manipuláveis e isso se deve à sua credulidade, pois ainda não possuem o senso crítico desenvolvido e confiam na autoridade das pessoas que as cercam.
O cérebro delas é pré-programado para apreender todas as informações transferidas em pouquíssimo tempo, e com isso é difícil impedir ao mesmo tempo a entrada de informações prejudiciais que os adultos impediriam sem esforço. Por isso, é de se esperar que cérebros de crianças sejam crédulos e vulneráveis a qualquer sugestão.
Um exemplo disso é Marjoe Gortner. Ele teve um nascimento difícil - quase foi estrangulado pelo cordão umbilical - e o obstetra disse à sua mãe que apenas por um milagre ele havia sobrevivido. Assim, “Marjoe”, – junção dos nomes “Maria e José” – assumiu sua posição na extremidade de uma longa linhagem de ministros evangélicos.
Desde muito pequeno, suas habilidades de pregação foram meticulosamente cultivadas. Antes de “mamãe” e “papai”, Marjoe aprendeu a dizer “Aleluia!” e, aos nove meses de idade, gritava “oh, glória!” no microfone. Aos 3 anos, ele sabia pregar o evangelho de memória e recebia aulas de interpretação dramática em todo tipo de performance. Com 4 anos, Marjoe foi oficialmente ordenado ao ministério e lançado numa carreira extraordinariamente bem-sucedida.
A “Criança Miraculosa” deixava multidões em pranto e estado de “êxtase religioso”. Diziam os fiéis que o garotinho era um “milagre de Deus”. Mas a verdade é que Marjoe recebia um treinamento cuidadoso, norteado por uma disciplina severa e a insaciável ambição de sua mãe. Os sermões eram impecavelmente memorizados: cada palavra, cada pausa, cada gesto, cada “cura de fé” - tão cativantes que enchiam os pratos de coleta da igreja.
Marjoe considera o que passou como praticamente uma lavagem cerebral, onde não teve ao menos tempo para ser criança. Na adolescência, ele foi se desiludindo diante da encenação de seus poderes divinos, deixou o movimento evangélico em busca de meios de sustento mais legítimos e fez parte de uma banda de rock. Mas em seguida voltou para o circuito evangélico para realizar seu documentário-denúncia “Marjoe”, gravado em 1971 e ganhador do Oscar no ano seguinte, revelando os milenares truques que utilizava e expondo as características de indústria do entretenimento que tornaram o evangelismo um movimento popular de enorme sucesso comercial.
Mas e quanto a todas as outras crianças que passam por imposições e manipulações mas que, ao contrário de Marjoe, nunca têm a oportunidade de entender o que lhes foi feito?
Ninguém conhece realmente o poder de recuperação de uma criança. Há jovens que viram as costas às tradições a que estiveram submersos durante anos, sem nenhum dano, enquanto há crianças que são feitas prisioneiras ideológicas de tal modo que se tornam suas próprias carcereiras mais tarde, se recusando a ter conhecimentos que poderiam lhes abrir e mudar a mente.
Isso seria invadir os “valores” e a “autonomia” dos pais em relação a seus próprios filhos, certamente dirão. Mas os mais prejudicados está claro que serão sempre as crianças.
A reprodução do comportamento dos pais e conseqüente criação ausente de questionamentos e discussões só pode levar a um desenvolvimento unicamente passivo e não reflexivo da criança, onde o conhecimento nunca terá lugar frente à imitação.
Não deveríamos tapar os olhos e achar que deixar os filhos totalmente entregues aos pais é benigno, pois sabemos que essa privacidade da vida em família encobre práticas nas quais os pais submetem os filhos a tratamentos que os mandariam para a prisão se não fosse com o filho deles (como castigos violentos e ofensas, por exemplo). E o que dizer ainda dos casos de violência sexual e maus-tratos de todos os tipos que os filhos sofrem dos próprios pais ou outros parentes próximos?
A violência contra as crianças ainda prevalece em todos os países do mundo, estando presente em qualquer cultura, classe, nível de escolaridade, faixa de renda e origem étnica.
A violência contra as crianças ainda prevalece em todos os países do mundo, estando presente em qualquer cultura, classe, nível de escolaridade, faixa de renda e origem étnica.
É ilusório pensar que os pais, por tomarem decisões “adultas” e baseadas em suas experiências, estejam com a razão. Embora eles tenham alcançado a idade para consentir e tomar decisões “por sua livre escolha”, suas percepções do que é correto e bom são suas, produtos apenas de sua própria percepção, e seus filhos serão vítimas da sua ignorância.
Como diz o psicólogo Nicholas Humphrey:
“As crianças têm o direito humano de não ter a cabeça aleijada pela exposição às péssimas idéias de outras pessoas — não importa quem sejam essas outras pessoas. Os pais, da mesma maneira, não possuem permissão divina para aculturar os filhos do modo que bem quiserem: não têm o direito de limitar os horizontes do conhecimento dos filhos, de criá-los numa atmosfera de dogma e superstição, ou de insistir que eles sigam os caminhos estreitos e predefinidos de sua própria fé.”
Que chances essas crianças terão se não fizermos nada e os deixarmos à mercê das convicções e ignorâncias daqueles que deveriam estar lhes protegendo e formando? O direito à liberdade é espalhado pelo mundo, mas não para as crianças.
Nenhuma criança tem direito à liberdade de doutrinação, de pensamento, de ser. Devemos deixar que as crianças sejam submetidas a isso por causa de uma falsa moral que só faz esconder os abusos contra esses seres humanos indefesos?
"Nenhuma criança tem direito à liberdade de doutrinação, de pensamento, de ser."
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Todos nós deveríamos nos sentir incomodados ao ouvir uma criança pequena sendo rotulada como pertencente a uma ou outra religião específica. Afinal, as crianças são jovens demais para tomar decisões fundamentais sobre suas opiniões a respeito da origem do mundo, da vida ou da moral, como defende o biólogo Richard Dawkins dizendo que “O simples termo ‘criança cristã’ ou ‘criança muçulmana’ deveria soar como unhas arranhando uma lousa.”
E o filósofo Daniel Dennett completa: “Imagine se identificássemos as crianças como crianças fumantes ou bebedoras, porque seus pais o são?”
Todos têm direito de tomarem suas próprias decisões. Mas essas decisões precisam ser decisões informadas e muito bem pensadas. E as crianças não têm como tomar decisões ainda pequenas, não têm informações suficientes para isso.
O que dizer a elas então?
TUDO.
Para ensinar religião, ensine sobre todas e as deixem pensar sobre isso, do mesmo modo como ensinaria história ou filosofia. Elas precisam saber que têm opções, em tudo, e que tudo tem um motivo, que nada tem como resposta “porque sim”, ou “porque eu estou dizendo”. Se não sabe, diga simplesmente “não sei”, procure saber, ou procure alguém que saiba para explicar.
Para ensinar religião, ensine sobre todas e as deixem pensar sobre isso, do mesmo modo como ensinaria história ou filosofia. Elas precisam saber que têm opções, em tudo, e que tudo tem um motivo, que nada tem como resposta “porque sim”, ou “porque eu estou dizendo”. Se não sabe, diga simplesmente “não sei”, procure saber, ou procure alguém que saiba para explicar.
Assim, ao menos ninguém será enganado ou privado de fazer as melhores escolhas.
Muito boa sua postagem em defesa dos direitos da criança.
ResponderExcluirSeria bom se os meios de comunicação, rádio, TV, as respeitassem também.
Assim, em vez dos programas de violência e sexo, mostrassem programas educativos.
Olá Kelly
ResponderExcluirMuito comovente e criativo seu texto.
A criança necessita respeito.
O que os pais mais ouvem delas (quando zangadas) é:
"Não pedi pra nascer".