quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

UMA VIAGEM AO MUNDO DOS SURDOS

 
A falta de conhecimento sobre a natureza do mundo percebido pelos surdos, comum às pessoas que não se envolvem com estes, mais do que curiosidades, pode trazer questionamentos importantes e profundos, especialmente sobre o modo como a cultura é necessária para o desenvolvimento do ser humano.

Inúmeros casos mostram que aqueles que nascem surdos correm um sério risco de ficarem seriamente desamparados em relação à linguagem, perdendo o meio pelo qual entramos plenamente em contato com nossa cultura, podendo até mesmo serem equiparados a deficientes intelectuais.

Isto porque grande parte do que nos torna humanos não é apenas biológico, mas social e histórico. As nossas capacidades de linguagem, comunicação e pensamento são cultivadas de geração para geração através da cultura. Portanto, para nós, como diz o neurologista e escritor Oliver Sacks, "a cultura é tão importante quanto a natureza".

Há vários graus de surdez que vão desde aquelas pessoas que conseguem ouvir com o auxílio de aparelhos até os totalmente surdos, que não houvem sequer um som. Mas há uma distinção importante a ser feita: mais importante do que o grau da surdez é a idade em que ela ocorre. As pessoas que ficam surdas após terem adquirido a linguagem, permanecem vivendo em um mundo repleto de sons - mesmo que estes sejam fantasmagóricos.  Mas para aqueles que nascem surdos, nunca há ilusão de som, apenas uma completa ausência - algo inimaginável para qualquer um de nós ouvintes.

Essas pessoas que nascem surdas ou a adquirem na infância antes de aprender uma língua - a chamada surdez pré-linguística - vivem num mundo de absoluto e contínuo silêncio. Incapazes de ouvir seus pais ou ter qualquer outro contato social, terão sua linguagem deficiente se não forem tomadas providências desde cedo. E essa deficiência linguística pode comprometer tanto a capacidade intelectual que, sem ela, podemos parecer até mesmo deficientes intelectuais.

Por esse motivo, até o século XVIII, os natissurdos - em inglês, "deaf and dumb" - foram julgados "burros" e considerados incapazes. Foi apenas quando se propuseram a tentar se comunicar apropriadamente com essas pessoas, através da Linguagem de Sinais (esta será abordada melhor em um próximo texto), que eles se mostraram capazes de ser "educáveis" e ingressar por completo na cultura e na vida humana.

Antes de 1750, a situação das pessoas com surdez pré-linguística era desoladora, sendo eles considerados mudos por não desenvolverem a fala e, portanto, serem incapazes de se comunicar e, assim, impedidos de desenvolverem-se e aprenderem com os outros, considerados atrasados ou retardados. 

É importante ressaltar que o termo "surdo-mudo" é errôneo, pois mudo é aquele que é incapaz de produzir sons e o surdo  não o é - embora a pessoa surda possa não falar, ela pode emitir sons. A dificuldade dos surdos em falar decorre do fato de elas não poderem escutar e, portanto, não terem como imitar os sons, ou quando falam, não terem o feedback de como sua voz está saindo para aproximá-la do modo como estamos habituados.

Uma revolução para os surdos se daria quando o abade De l'Epée conheceu a língua de sinais dos surdos pobres que vagavam por Paris. O abade não tolerava a ideia de as almas dos surdos viverem e morrerem sem serem ouvidas em confissão. 

Ele prestou atenção aos surdos e dedicou-se a aprender a língua de sinais e, então, associando sinais a figuras e palavras escritas, ensinou seus pupilos a ler e, com isso, deu-lhes acesso aos conhecimentos e à cultura do mundo. A partir daí, e até a época da morte do abade, em 1789, foram criadas 21 escolas para surdos na França e na Europa.

E isso de fato foi uma revolução a se comemorar, pois libertou as capacidades dessas pessoas, permitindo-lhes crescer e pensar

Assim, os surdos sem língua podem ser considerados como retardados de um modo particularmente cruel, pois a inteligência está presente, mas condenada pela ausência de um modo para expressá-la.

Mesmo De l'Epée considerava a língua de sinais incompleta, não sendo capaz de expressar tudo o que a língua falada pode, e até hoje muitos têm essa ilusão. 

Mas a língua de sinais equipara-se à língua falada, prestando-se igualmente a tudo - seja concreto ou abstrato - com uma facilidade que às vezes é maior do que a da língua falada  (pessoas que aprenderam ambas as línguas desde a infância por vezes preferem a língua de sinais para se comunicarem). 

A linguagem de sinais fez os surdos emergirem da obscuridade e negligência e logo surgiram escritores surdos, engenheiros surdos, filósofos surdos - intelectuais surdos, antes inconcebíveis, então eram possíveis. 

Mas a história não terminou aí, pois em um momento crítico da história dos surdos, o mundo voltou-se contra o uso da língua de sinais. Existia uma contracorrente de pais de crianças surdas e professores, que pregavam que o objetivo da educação dos surdos deveria ser ensiná-los a falar.  Questionava-se o uso da língua de sinais como um instrumento de comunicação exclusivamente entre os surdos. Ensiná-los a falar e ler lábios seria o modo para integrá-los com o resto da população.

Mas este ensino exigia um árduo e intensivo treinamento exclusivo, por não ser natural aos surdos, ao passo que o método de De l'Eppe educava centenas de alunos. Além disso, o resultado do treinamento árduo para falar poderia proporcionar apenas uma imitação da fala e não uma fala espontânea. O que seria "melhor", integração ou educação?

Muitos argumentaram que a capacidade de argumentação não podia ser a base da instrução primária dos surdos, mas foi a autoridade e prestígio de Alexander Graham Bell - por um lado, um gênio tecnológico e por outro, membro de uma família que prezava a perfeição da fala e tinha a surdez estranhamente negada, sendo sua mãe e esposa surdas sem admitirem tal fato - na defesa da oralização dos surdos que fez com que o uso da língua de sinais nas escolas fosse oficialmente abolida, no Congresso Internacional de Educadores de Surdos, realizado em 1880, em Milão.  

A partir de então, professores ouvintes, e não professores surdos, passaram a ensinar os surdos e pagou-se um preço intolerável pela aquisição da fala. 


O oralismo e a supressão da língua de sinais acarretaram uma 
deterioração marcante no aproveitamento educacional das crianças surdas e na instrução dos surdos em geral, que se viam forçados a aprender a "artificial" língua falada.

O conteúdo da educação oral dos surdos era pobre se comparado com o das crianças ouvintes, pois gasta-se muito tempo com um trabalho individual intensivo que sobra pouco tempo para transmitir informações, cultura, habilidades, etc.

Surgiu, então, como um meio-termo entre as línguas falada e escrita uma língua em sinais, que seria uma combinação das duas línguas - o inglês em sinais ainda é bastante usado nos Estados Unidos. Mas não é possível transliterar uma língua de sinais para uma língua falada palavra por palavra, porque suas estruturas são essencialmente diferentes. 

E, com o inglês em sinais, por exemplo, os surdos têm que aprender sinais não pelas ideias e ações que desejam expressar, mas pelos sons fonéticos da língua que eles não podem ouvir.
Já o sistema combinado entre a língua de sinais e a leitura labial com a fala talvez seja viável, se a educação levar em consideração quais capacidades são mais bem desenvolvidas nas diferentes fases do crescimento.

O fato é que as pessoas profundamente surdas não mostram nenhuma habilidade inata para falar - esta é uma habilidade que tem que ser ensinada a eles através de um trabalho árduo. Mas elas demonstram  uma singular inclinação para a língua de sinais, que é totalmente acessível para os surdos. 

Tanto que as crianças surdas filhas de pais surdos que utilizam a língua de sinais podem executar seus primeiros sinais por volta dos 6 meses de vida e, com um ano e meio, já se expressam consideravelmente.

Esse ensino desde os primeiros meses é fundamental, pois se a criança não aprende a língua de sinais o mais cedo possível seu desenvolvimento pode ser prejudicado. O primeiro contato das crianças surdas deve ser com a língua de sinais - esta que lhes é natural. E a língua de sinais não inibe a aquisição  da fala, mas provavelmente a auxilia.

Mas o que acontece se não desenvolvermos uma linguagem?

O ser humano não ficaria mentalmente deficiente sem uma língua, mas fica restrito ao alcance de seus pensamentos - confinado a um mundo imediato. 

A língua transforma a experiência, permitindo-nos lidar com coisas à distância e agir sobre elas sem manuseá-las fisicamente ou mesmo vê-las. Além disso, podemos manipular símbolos - representações da realidade - e chegar a versões inusitadas e criativas da realidade, podendo modificá-la.

"Podemos, se quisermos, simbolicamente virar do avesso o universo."  -  Joseph Church.

Vygotsky já dizia sobre o poder das palavras de nomear as coisas para permitir que as manipulemos mentalmente, que nos proporciona uma "reflexão generalizada sobre a realidade, que é também a essência do significado das palavras".

Casos como o de Kaspar Hauser e Hellen Keller, que tiveram contato com a linguagem tardiamente - o primeiro ficou dezessete anos confinado em um porão sem qualquer contato humano e a segunda foi tratada como animal pelos pais que não sabiam como lidar com a menina, que era surda e cega - mostram como a linguagem liberta a mente e a inteligência que, sem a linguagem, ficam aprisionadas. Ambos os casos foram retratados em filmes: "O Enigma de Kaspar Hauser" e "Black" são ótimas indicações para quem deseja se aprofundar no assunto.

É somente na relação com o outro que a linguagem emerge e as crianças parecem adquiri-la de modo automático, simplesmente por serem crianças e estarem em contato com a linguagem com a qual as pessoas a sua volta se comunicam entre si e com elas. A língua do adulto, internalizada pela criança, permite a ela passar do mundo perceptivo para o conceitual, e também estar apta a comunicar-se.

É por isso que os filhos surdos de pais também surdos são mais bem-sucedidos do que os filhos surdos de pais ouvintes, pois estes não sabem como se comunicar com os filhos - falam entre si e tentam falar com a criança, que não escuta, e não consegue entender o que se passa a sua volta. 

Essas crianças devem ser colocadas imediatamente em contato com a Língua de Sinais (Libras) - por direito, sua primeira língua -, pois só assim poderão fazer parte do nosso mundo. 

Mas os pais muitas vezes não conhecem a língua de sinais e até têm certo medo de perder um laço com  a criança, por não serem eles quem ensinarão à criança a linguagem. Estes e outros fatores podem contribuir para que a criança tenha uma comunicação defasada e mesmo deficiente, se as devidas providências não forem tomadas o mais cedo possível.

Com tudo isso, o que podemos perceber é que as capacidades linguísticas e intelectuais de modo algum inexistem  nas pessoas surdas, mas sim que há obstruções ao desenvolvimento dessas capacidades. 

Por isso, devemos estar atentos às necessidades dos outros e não julgá-los pelo modo como a vida por ventura os prejudicou, sabendo que eles são tão capazes quanto qualquer um de nós, se nos forem dadas as devidas condições para que o nosso desenvolvimento ocorra de forma adequada.

9 comentários:

  1. Muito bom pois a cultura é muito importante para nosso convívio ,a comunicação faz abranger vários conhecimentos.

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  2. Muito bom pois a cultura é muito importante para nosso convívio ,a comunicação faz abranger vários conhecimentos.

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  3. Olá! Eu sou enfermeiro e acho muito importante,nos os ouvintes aprender a língua (Libra) que é uma língua muito importante para meio de comunicação esses nossos irmãos.parabéns pelo blogue.

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  4. Essencial. completo de informações.

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  5. Oi pessoal, faco educacao fisica foi um texto de suma importancia que enriqueceu meus conhecimentos.Grato

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