segunda-feira, 6 de setembro de 2010

A Causa Do Mal-Estar Na Civilização




"Existem infinitamente mais homens que aceitam a civilização como hipócritas do que homens verdadeiramente e realmente civilizados." - Sigmund Freud

É preciso saber do passado para entender o presente, e é preciso saber do passado e do presente para formar um juízo sobre o futuro. Mas poucas pessoas têm conhecimentos sobre a natureza humana, e menos ainda em todos os seus desdobramentos.

Já dizia Freud que "os homens vivem o presente como que ingenuamente, sem conseguir apreciar seus conteúdos".

E isso acontece porque elas baseiam seus conhecimentos em fatores puramente baseados em sua experiência particular, seus fracassos e vitórias e tudo o mais que formou sua identidade através de sua vida.


Freud define a cultura humana - não fazendo distinção entre cultura e civilização, o que também farei neste texto - como tudo aquilo o que se distingue da vida animal. E por mais que não possam viver em isolamento, os homens podem considerar opressivos os sacrifícios que lhe são exigidos pela cultura.

Embora a cultura seja um interesse humano geral, os indivíduos tendem a ser inimigos dela.

A vida humana em comum só se torna possível quando se reúne uma maioria de pessoas, que junta é mais forte do que qualquer indivíduo sozinho e que permanece unida contra todos os indivíduos isolados.

Sua essência pode ser considerada o fato de os membros da comunidade restringirem suas possibilidades de satisfação dos instintos, enquanto o indivíduo sozinho desconhece tais restrições.

Mas para se viver em comunidade é preciso abrir mão de certas coisas.


A ‘civilização’ descreve a soma total das realizações e regulamentos que distinguem nossas vidas das dos animais, e que servem para proteger os homens contra a natureza e ajustar os seus relacionamentos uns com os outros.

Depois que o homem primitivo descobriu que estava literalmente em suas mãos melhorar a sua vida na Terra através do trabalho, deve ter feito diferença que outro homem trabalhasse com ele, ou contra ele. Esse outro homem adquiriu para ele o valor de um companheiro de trabalho, com quem era útil conviver.

Mas por mais que não se possa viver em isolamento, consideram-se opressivos os sacrifícios exigidos pela cultura com o propósito de possibilitar uma vida em comum.

Isto porque algumas coisas são muito difíceis de serem abandonadas, por proporcionarem prazer.


O princípio do prazer domina os seres humanos
. O prazer provém da satisfação de necessidades. Assim, nossas possibilidades de felicidade, neste sentido, sempre são restritas. Por outro lado, a infelicidade é muito mais fácil de ser experimentada.

O sofrimento nos ameaça a partir de nosso próprio corpo, que está condenado à decadência e à dissolução; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com os outros.

Não é de se admirar que, com tantas possibilidades de sofrimento, os homens tenham preferido moderar suas reivindicações de felicidade desejando simplesmente escapar da infelicidade ou sobreviver ao sofrimento, o que coloca a tarefa de evitar o sofrimento em primeiro plano, e a de obter prazer em segundo.

Muitos caminhos existem para cumprir esses preceitos. Viver para satisfazer irrestritamente todas as necessidades pode parecer o método mais tentador de conduzir as vidas, mas isso significaria colocar o prazer antes da cautela.

Contra o sofrimento que pode vir dos relacionamentos humanos, a defesa mais imediata é o isolamento voluntário, manter-se à distância das outras pessoas. A felicidade que pode ser conseguida através desse método é, podemos dizer, a felicidade da quietude. Seria nos defendermos do temível mundo externo nos afastando dele.


Há, é verdade, outro caminho, e melhor: o de tornar-se membro da comunidade humana e, com o auxílio de uma técnica orientada pela ciência, passar para o ataque à natureza e sujeitá-la à vontade humana. Trabalha-se então com todos para o bem de todos.


Mas há também outros modos grosseiros de se satisfazer. Talvez o mais grosseiro (após a servidão cega a todos os instintos), embora também o mais eficaz, seja o químico: a intoxicação.

Existem substâncias que, quando presentes no sangue ou nos tecidos, provocam em nós, diretamente, sensações prazerosas, alterando, também, tanto as condições que dirigem nossa sensibilidade, que nos tornamos incapazes de receber impulsos desagradáveis.

O serviço prestado pelos veículos intoxicantes na luta pela felicidade e no afastamento da desgraça é tão altamente apreciado como um benefício, que indivíduos e povos lhes concederam um lugar permanente nas suas vidas.

Além da produção imediata de prazer, é visto também um desejo de independência do mundo externo, pois com o auxílio desses ‘amortecedores de preocupações’ é possível, em qualquer ocasião, afastar-se da pressão da realidade e encontrar refúgio num mundo próprio, com melhores condições. É exatamente essa propriedade dos intoxicantes que determina o seu perigo e a sua capacidade de causar danos.


Outro modo de lutar pelo afastamento da desgraça e buscar o bem-estar é o deslocamento de nossas energias para nosso aparelho mental, ou seja, nos concentrarmos nos atos e pensamentos intelectuais. A tarefa aqui é reorientar os instintos e impulsos e, tomando conta de si, ser capaz de controlar seus atos, munindo-se de raciocínio e pensamento.

Obtém-se o máximo quando se consegue intensificar a produção de prazer a partir das fontes do trabalho psíquico e intelectual. Quando isso acontece, o destino pouco pode fazer contra nós.

Uma satisfação desse tipo, como, por exemplo, a alegria do artista em criar, em dar corpo aos seus pensamentos, ou a do cientista em solucionar problemas ou descobrir verdades, possui uma qualidade excepcional. Apenas poderíamos dizer que tais satisfações parecem ‘mais refinadas e mais altas’.

Mas sua intensidade se revela muito pouca quando comparada com a que se origina da satisfação de impulsos instintivos grosseiros e primários, simplesmente porque ela não convulsiona o nosso ser físico.

O ponto fraco desse método é não ser geralmente aplicável à sociedade, por ser acessível a poucas pessoas. Principalmente porque, devido à dedicação e capacitação que isso exige, as pessoas prefiram os modos mais fáceis ou grosseiros de obter satisfação.


Um outro processo opera de modo mais energético e completo. É quando o indivíduo considera a realidade como a inimiga e fonte de sofrimento e, se quiser ser de algum modo feliz, tem de romper todas as relações com ela.

A satisfação é assim obtida através de ilusões, sem que a discordância delas com a realidade interfiram na crença nessa ilusão.

Tenta-se recriar o mundo, construindo em seu lugar um outro mundo, no qual os seus aspectos mais insuportáveis são eliminados e substituídos por outros mais adequados aos próprios desejos. Mas quem quer que, numa atitude de desafio desesperado, se lance por este caminho em busca da felicidade, geralmente não chega a nada.

Contudo, todos se comportam, sob determinado aspecto, como um paranóico, corrigindo algum aspecto do mundo que lhe é insuportável pela elaboração de um desejo e introduzindo esse delírio na realidade.

Concede-se especial importância ao caso em que a tentativa de obter uma certeza de felicidade e uma proteção contra o sofrimento através de um remodelamento delirante da realidade, é efetuada em comum por um considerável número de pessoas. As religiões da humanidade devem ser classificadas entre os delírios de massa desse tipo.

É desnecessário dizer que todo aquele que partilha um delírio jamais o reconhece como tal.

Seguimos o mesmo caminho quando os nossos objetivos são menos extremados e simplesmente tentamos controlar nossa vida instintiva, sem saber o motivo para tal ação. Apenas sujeita-se ao princípio da realidade compartilhado por todos.


Contudo, os métodos mais interessantes de evitar o sofrimento são os que procuram influenciar o nosso próprio organismo. Em última análise, segundo Freud, todo sofrimento nada mais é do que sensação, que só existe na medida em que o sentimos. E só o sentimos como conseqüência de certos modos pelos quais nos regulamos.

Existem tendências antissociais e anticulturais que num grande número de pessoas são fortes o bastante para determinar o seu comportamento na sociedade humana. E a maioria dos homens apenas obedece às proibições culturais quando pressionado pela coerção externa, enquanto esta é válida e temida.

Como vemos, o que tem decidido o propósito da vida das pessoas é simplesmente o programa do princípio do prazer.


Pode-se imaginar que o descontentamento com a cultura poderia acabar se esta não exigisse a repressão dos impulsos e não fosse imposta à força. Desse modo, pensaria-se que os homens, sem serem perturbados por disputas interiores - pois não teriam mais que reprimir seus impulsos - poderiam se dedicar à obtenção de bens e usufruir deles sem grandes dificuldades.

Mas coerção - imposição à força - e repressão dos impulsos são a base de toda cultura. Isso porque os homens não são espontaneamente inclinados ao trabalho e argumentos nada podem contra suas paixões.


Poderíamos então chamar a civilização, ou cultura, de uma técnica da arte de viver.


Ela é uma notável combinação de aspectos característicos, visando tornar o indivíduo independente do destino (ou da sorte) e, para isso localiza a satisfação em processos mentais internos. Não se contenta em visar apenas uma
fuga do desprazer, mas se esforça em busca de uma consecução completa da felicidade.

Como foi que tantas pessoas vieram a assumir uma estranha atitude de hostilidade para com a civilização e a renúncia a seus impulsos, se certamente não haveria pessoas mais felizes se abandonássemos a cultura e retornássemos às condições primitivas?


Não é fácil entender como pode ser possível privar de satisfação um instinto. Não se faz isso impunemente. Se a perda não for compensada, pode-se esperar que sérios distúrbios decorrerão disso. O homem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança.

Não devemos esquecer, contudo, que na família primitiva apenas o chefe desfrutava da liberdade instintiva, o resto vivia em opressão servil. Naquele período primitivo da civilização, o contraste entre uma minoria que gozava das vantagens da civilização e uma maioria privada dessas vantagens era, portanto, levada a seus extremos.

Quanto aos povos primitivos que ainda hoje existem, pesquisas mostram que sua vida instintiva não é, de maneira alguma, passível de ser invejada por causa de sua liberdade, já que estes povos estão sujeitos a restrições de outras espécies, talvez mais severas do que aquelas que dizem respeito ao homem moderno.


Mas com a devida justiça, o estado de nossa civilização é falho por atender de forma tão inadequada às nossas exigências de um plano de vida que nos torne felizes, e por permitir a existência de tanto sofrimento, que provavelmente poderia ser evitado. Devemos mostrar as raízes de sua imperfeição.

Podemos esperar que ocorram alterações na civilização que satisfaçam melhor nossas necessidades e escapem às nossas críticas. E seria de maior utilidade que as imposições para uma vida em sociedade fossem entendidas antes de serem aceitas.

Os homens se encontram expostos em alto grau a tentaçoes à satisfação dos instintos, elas estão por toda a parte, e as tentações são simplesmente aumentadas pela frustração constante, ao passo que a sua satisfação ocasional as faz diminuir, ao menos por algum tempo.


A evolução da civilização pode ser simplesmente descrita como a luta da espécie humana pela vida. Podemos rejeitar a existência de uma capacidade original, por assim dizer, natural de distinguir o bom do mau.

O que é mau, levando-se em consideração o conceito de que isto seria algo que não nos proporcione evolução, freqüentemente não é de modo algum o que é prejudicial ou perigoso a nós, pelo contrário, pode ser algo desejável e prazeroso.

Aqui, então, devemos ter o cuidado de não confundir algo que satisfaz um instinto de algo que proporciona evolução e bem-estar ao homem. E isso apenas conseguimos com um conhecimento profundo da história e das limitações humanas, bem como de suas capacidades.


Apenas através da influência de indivíduos exemplares que as massas reconheçam como seus líderes é que elas podem ser movidas ao trabalho e às renuncias de que depende a continuidade da cultura – mas isso só significaria algo se esses líderes tivessem uma compreensão superior acerca das necessidades da vida e dominassem seus próprios desejos impulsionais, mas meios de poder os fazem independentes desses fatores.

Deveriam haver líderes superiores, educadores das gerações futuras e dispostos a fazer as transformações necessárias para um pensamento mais elevado da sociedade acerca de sua natureza e de seus patrimônios intelectuais.

Talvez novas gerações, educadas para valorizar o pensamento e que cedo tenha experimentado os benefícios da civilização, tenham uma relação diferente com ela, prontas a lhe oferecer os sacrifícios necessários. Nenhuma cultura influencia os homens dessa maneira desde a infância.


A frustração de não te
r um impulso satisfeito, por proibição de uma instituição que a estipula, é resultado dos esforços da civilização em afastar o homem do seu estado de animal primitivo.

Adaptar o mundo a seus desejos é impossível, então por que não adaptar seus desejos ao mundo e aos seus objetivos?

Há desejos impulsionais, presentes também nos animais, como os do incesto, do canibalismo e do prazer de matar que todos os homens parecem unânimes em rejeitar, mas que foram amplamente difundidos e praticados no passado.

Talvez um dia, possivelmente, o pensamento humano seja capaz de evoluir ao ponto de outras satisfações de desejo, que hoje são totalmente possíveis, parecerem tão inaceitáveis quanto o canibalismo nos parece hoje.

Afinal de contas, "a inteligência é o único meio que possuímos para dominar os nossos instintos".

5 comentários:

  1. Esse post agora é um dos meus favoritos.

    ResponderExcluir
  2. Muito Bom!!!! Estou me baseando nesse estudo para realizar um pequena cena com um trecho do "Fala Comigo Doce como a Chuva do Tenesse Williams". Quero focar no isolamento humano... Esse seu post está bem sintético e ótimo para iniciar um estudo com meus colegas, já li o livro é óotimo!

    Nathalia Girão

    ResponderExcluir
  3. Nas substancias intoxicantes você está juntando todos os tipos de drogas? Das alucinógenas as analgesias? Porque elas tem um efeito totalmente diferente, tanto no corpo quanto no pensamento.
    E com todas as drogas existe a possibilidade de ter uma bad trip, não é algo que da prazer todas as vezes.
    E diversos povos que utilizavam certas substancias alucinógenas, usavam com intuitos espirituais ou para revelar mais sobre si mesmo.
    Sem contar que as drogas com certeza tiveram um papel importante na construção do pensamento humano, com certeza a sensação distocida de tempo/espaço, o aumento da imaginação, cores e etc que várias delas provocam tiveram uma reação positiva no cérebro, fazendo com que os humanos se questionacem sobre diversos temas.
    Quando você chama todas as drogas de ‘amortecedores de preocupações’, desculpa, mas você está sendo totalmente preconceituosa. E não entendi como o distanciamento da realidade palpavel por um curto periodo de tempo pode ter um aspecto negativo e até perigoso.

    "Como foi que tantas pessoas vieram a assumir uma estranha atitude de hostilidade para com a civilização e a renúncia
    a seus impulsos, se certamente não haveria pessoas mais felizes se abandonássemos a cultura e retornássemos às condições
    primitivas?"

    Mas então pra você só existe duas possibilidades? A total prisão que vivemos hoje ou o estado primitivo?

    E do mesmo jeito que era apenas o chefe que gozava da liberdade, é apenas uma pequena parcela da população que goza dos prazeres da vida. Em quanto os pobres/classe média baixa trabalham pra caralho, em troca de um salário ridiculo... ou uma pessoa que trabalha de seg a sab tem algum momento para sentir prazer, ou mesmo pra procurar conhecimento???
    O problema na verdade, não é o trabalho, e sim o emprego, que impõe horários, dias, fazendo com que a empregado viva em uma gaiola.
    O trabalho realmente é algo necessario e indispensavel pra qualquer ser humano (tendo em vista que até mesmo plantar e colher é um trabalho) o problema são as condições abusivas dos empregos hoje em dia.

    "Aqui, então, devemos ter o cuidado de não confundir algo que satisfaz um instinto de algo que proporciona evolução e
    bem-estar ao homem. E isso apenas conseguimos com um conhecimento profundo da história e das limitações humanas, bem
    como de suas capacidades."

    Tá, mas em diversos temas existem controversias, existem coisas que sempre serão ruins para umas e boa para outras, em certos casos não da pra classificar assim.

    E líderes??? O ideal seria chegar a um ponto de educação que todas as pessoas tivessem capacidade e conhecimento o suficiente pra influenciar nas decições da sociedade.

    "A frustração de não ter um impulso satisfeito, por proibição de uma instituição que a estipula, é resultado dos esforços da
    civilização em afastar o homem do seu estado de animal primitivo. "

    Mas a civilização acabou afastando tanto o homem que o transformou em uma máquina, programada para fazer sem pensar, questionar.
    E por que valeria a pena trabalhar incansavelmente para preservar uma sociedade de pessoas burras e tristes?

    Apesar de discordar veemente de várias coisas nesse texto, eu gosto muito do blog :]

    ResponderExcluir
  4. Na verdade, a referência não é a este ou aquele determinado tipo de drogas, mas aos indivíduos que se utilizam destes para obterem prazer e fugirem da realidade. É só um dos modos para se fazer isso. E os alucinógenos não "revelam mais sobre si mesmo", a reflexão faz isso, quer você esteja entupido de drogas ou sóbrio.

    O distanciamento da realidade pode ter um aspecto negativo e até perigoso porque você acaba se sentindo confortável e "feliz" com esta situação, acabando por não importar mais se isso é real ou não, se é saudável ou não, ou se é melhor do que outros meios de se realizar.

    "Mas então pra você só existe duas possibilidades? A total prisão que vivemos hoje ou o estado primitivo?"

    Absolutamente não, tanto que as pessoas vivem em sociedade mas agem muitas vezes primitivamente. Ou seja, o que temos são ambas as coisas influenciando as pessoas, que não sabem o que seguir. Mas, porque não sabem? Porque preferir voltar ao estado primitivo de onde percebemos que é melhor sair? Essa é a questão, e não se o que temos agora é o modo perfeito de civilização (por que não é) ou se devemos escolher este ou aquele.

    "Mas a civilização acabou afastando tanto o homem que o transformou em uma máquina, programada para fazer sem pensar, questionar."

    Exatamente por isso disse antes que não é o modelo perfeito (se é que podemos chamar assim), mas, novamente, a questão aqui é o desejo de agir primitivamente, não levando em conta a evolução humana ao sair desse estágio. A(s) sociedade(s) tem muitas falhas, mas devemos corrigí-las e não desperdiçar o que já ganhamos com isso.

    ResponderExcluir