sexta-feira, 1 de outubro de 2010

O CULTO ÀS ESTRELAS: A religião moderna



“O selvagem adora ídolos de pau e pedra; O homem civilizado, ídolos de carne e sangue.” BERNARD SHAW


O maior espetáculo do mundo moderno. Nasce em 1910 a máquina de fabricar sonhos.

Voltemos um pouco. No final do século XIX surge a fotografia, e logo em seguida a imagem em movimento - o vídeo.

Com o surgimento do vídeo começou-se a não somente mostrar a realidade, mas criar ficções para serem representadas na realidade – assim surge o cinema.

Este começo de produções cinematográficas, como em todas as relações humanas, principalmente pós- industriais (Revolução Industrial), acarreta a concorrência do mercado de filmes.

Os cineastas, ainda amadores tecnicamente, apelam para um cinema que mexa com os instintos mais demasiado humanos, sócio-antropológicos, nossos arquétipos adormecidos de grande parte das experiências de gerações passadas e primitivas. Criam a estrela.

Titulado de Star System, surge em 1919, em Hollywood, e é o responsável pela fabricação das estrelas como sendo o fator primordial na indústria de filmes.

Juntou o calcanhar de Aquiles da natureza humana com técnicas de imagem-movimento.

O cinema, como percebe Gilles Deleuze, é o meio onde não existe linguagem, lugar onde a filosofia não tem barreiras mediadoras para atrapalhar o nosso pensar. O cinema nos introduz a um pensamento, tal qual nós pensamos um pensamento.

O resultado é um relaxamento estético, onde o espectador parece viver o próprio filme.

A estrutura do cinema mais tradicional permite e busca esse lúdico. Este foi o objetivo da maioria dos diretores. O que se pretendia era que o filme pudesse transmitir a visão do protagonista, a visão de um mundo já construído moralmente. Assim, o ator vale o que o diretor faz dele na bolha cinematográfica.

Esses dois fatores fundidos geraram um fenômeno ainda não experiênciado na humanidade (ao menos neste tipo de vida humana que conhecemos), uma religião onde os Deuses estão vivos e não precisam de poder algum, dito, sobrenatural, ou brutal.

Um culto a seres ao mesmo tempo humanos e divinos. Análogos em alguns aspectos aos heróis mitológicos, e em outros a deuses do Olimpo – mas ainda, sim, diferentes.

Não se trata de dizer que os espectadores não conseguem fazer a distinção entre o espetáculo cinematográfico e a vida, este é um território que se confunde entre a crença e o divertimento.

O Culto das Estrelas é uma religião semi-embrionária e sempre inacabada. Em outras palavras, o fenômeno das estrelas é simultaneamente estético-mágico-religioso.

Ainda, esse culto não poderia ser considerado uma ilha de ignorância, de infantilidade, de religiosidade no seio de uma civilização moderna que seria essencialmente racional. É apenas o desenvolvimento de uma vida urbana e burguesa.

E ainda vive. Podemos observar os resíduos do Culto às Estrela nos programas de entrevistas e de auditório (Jô Soares, Altas Horas, Faustão), onde são as estrelas que movem todo o espetáculo. Adoram velas...

As estrelas são mais do que objetos de admiração. São também motivo de culto. Constitui-se ao seu redor um embrião de religião.

Essa religião se ramifica pelo mundo. Afirmo que entre os espectadores do cinema, não há nenhum verdadeiramente ateu. E, no meio das multidões cinematográficas, destaca-se a tribo de fiéis portadores de relíquias, consagrados à devoção, os fanáticos ou fãs.

O culto alimenta-se, primeiramente, das publicações especializadas sobre artistas. Este é o motivo de determinadas revistas dominarem o mercado de veiculação. Os elementos estimuladores da fé são: fotografias, entrevistas, fofocas, vidas romanceadas, etc. Mas ainda existe um canal mais direto, mais pessoal que as revistas: o correio das estrelas.

Atores teatrais, dançarinos e cantores recebem essas correspondências de seus admiradores, mas a das estrelas é muito maior, e diferente no conteúdo. Pode-se estimar em vários milhões por ano as cartas dirigidas às estrelas de Hollywood.

Um grande estúdio recebia, em 1939, entre 15 mil a 45 mil cartas por mês, cifra mínima em relação a outros anos. Nas palavras de Margaret Thorp (uma das primeiras estrelas): "uma estrela de primeira grandeza recebe 3 mil cartas por semana". Este é considerado o barômetro exato da opinião pública a seu respeito.

Aspectos religiosos organizados também brotam no Culto às Estrelas. Desde as religiões primitivas até atualmente, a religiosidade transborda de um caráter privado para um caráter social. As comunidades religiosas realizam, periodicamente, reuniões com os fiéis em um lugar próprio para seus cultos sagrados - as igrejas, os centros, as catedrais, cultos, terreiros, etc.

O Culto às Estrelas possui, também, seus clubes de admiradores, que são verdadeiras capelas onde se exaltam fervores particulares. E o ídolo, periodicamente, vem santificar o seu clube, revelando aspectos novos de sua vida privada-pública e suas atividades cinematográficas, respondendo à questões que lhes são dirigidas, cantando, dançando e deixando fotos recentes.

O rendimento do clube, como o das igrejas, vão em parte para instituições de caridade, em parte para a propaganda da fé. Luís Mariano foi talvez a maior estrela masculina, depois de James Dean, e possuía uma efígie de bronze em um de seus clubes.

Há clubes democraticamente abertos a qualquer tipo de admiradores, outros tem caráter mais esotérico. Outro feito só para a elite de adoradores fazia exigências para que se pudesse participar:

- ter visto todos os filmes da estrela pelo menos 2 vezes;
- apresentar uma coleção importante de documentos sobre a estrela;

- ser assinante do um periódico especializado sobre estrelas;

Prestem atenção, são as estrelas que nos anunciam os produtos de higiene, cosméticos, concursos de beleza, competições esportivas, lançamentos literários, campanhas de caridade e eventualmente eleições.

São os temas das revistas e jornais as suas vidas, suas escolhas, seus relacionamentos, sua intimidade, não importando o quão fútil e inútil forem.

Já haviam se perguntado por qual razão?

Sua vida privada é publica, sua vida pública é publicitária, sua vida na tela é surreal, sua vida real é mítica.

Fofocas, informações e confidências é o que move os paparazes no mundo das Estrelas. Pela razão de as Estrelas viverem muito longe, acima dos mortais, dos profanos, em suas mansões, é o que nos resta.

Canalizadas pelo controle da comunicação burguesa, essas necessidades sócio-antropológicas nos são excitadas. Na maioria das vezes, entram em nossas casas, por uma caixa de imagem (tv), e nos conduzem através de uma vida de sonhos com padrões de comércio. Nossos arquétipos são revirados.

A estrela não é apenas uma atriz. Suas personagens não são apenas personagens. As personagens do cinema contaminam as estrelas. Este foi inicialmente o papel do Star System (fez um excelente trabalho).

O cinema inventou a estrela. A estrela nasce quando o ator se sobressai ao personagem, ele é mais importante que seu papel, mas ao mesmo tempo seu papel o constrói.

Um mito é um conjunto de condutas e situações imaginárias. Como percebe Merleau-Ponty, é o imaginário-operante, determinada experiência que toma conta de sua percepção. Inexplicável para o fiel, mas que pode ser sentido, tal qual um desejo que move um homem.

É através do mito que as estrelas tornam-se sobre-humanas, tal como o mito do Hércules. No caso do ator, ele é o ídolo das multidões.

A divinização acontece através do amor, que é por si próprio um mito divinizador: amar é idealizar e adorar. Assim, todo amor é fermentação mítica.

A estrela não é idealizada simplesmente por encaixar-se de forma tão perfeita no seu papel, mas por ser idealmente bela. Esta “beleza” (helênica, arquetípica) é uma característica ideal à estrela. O teatro não exige atores belos. O star system quer belezas.

Muitas vezes estrelas são “misses” locais, nacionais ou internacionais. Assim, qualquer mulher bonita pode atuar no cinema. Todas poderiam sonhar se não houvesse tantas mulheres bonitas. Este é um motivo de tantas mulheres bonitas, na sociedade em que vivem, sonharem com o estrelato. Nos escritórios, nas salas de aula, nos balcões das grandes lojas, a beleza cativa alimenta e mantém o sonho: “Eu serei uma estrela”.

Talvez nem a mais talentosa das atrizes tem garantida a passagem ao estrelato, mas por outro lado a maior desconhecida pode se transformar de um dia para o outro em uma estrela, ser for bela.

Mas o star system não se contenta em fazer arqueologia das belezas naturais. Criou e renovou toda uma arte de maquiagem, dos figurinos, do comportamento, dos gestos, da fotografia e, quando necessário, da cirurgia que aperfeiçoa, conserva e mesmo fabrica a beleza. Que beleza é essa? A beleza star system - fabrica, ilude e faz vender.

A maquiagem está de tal maneira associada à estrela de cinema, que toda a moderna indústria dos cosméticos nasce em seu berço.

Herdeiras das máscaras e pinturas rituais da Antiguidade grega e das civilizações orientais, a maquiagem de teatro só procurou secundariamente embelezar os rostos. O cinema, em contrapartida, só utiliza acessoriamente a pintura no sentida da caracterização teatral. A maquiagem é uma mascara de possessão. Como nas festividades antigas e ritos sagrados, a máscara é sinal de espírito, um gênio ou um deus que se encarna.

A maquiagem aparece como um arquétipo de um espírito Deus, que no cinema toma proporções gigantescas, mas que aparece costumeiramente e de forma mais acentuada na vida social comum. Além do papel arquetípico, ela resgata a juventude e frescor; faz recuperar as cores; esconde as rugas, corrige imperfeições fora do padrão de beleza, e obviamente seguem o padrão de beleza – que já se percorreu pelo helênico, oriental, exótico, provocante, romântico, felino, etc.

O rosto pintado é um tipo ideal, digo industrial.

Embora o humano talvez possua em suas fontes arquetípicas resíduos de admiração pelo pintar dos rostos, nada se designa sobre o modo como se deve pintar. É ai que a cultura entra. O cinema inicialmente, mas logo as estrelas, servem como inspiração para os profanos, que buscam ter o pouco que seja de seus deuses, assim fermentando a indústria de cosméticos que fabrica a estrela (O Instituto Embelleze, por exemplo, está entre as empresas mais ricas do nosso país – Brasil).

É estupidez alegar que as pessoas desejam os produtos industriais. A verdade é que o que se consome é o que quer que a estrela esteja usando. Fica claro quando o diretor diz: “os figurantes vestem roupas. A estrela é vestida. Seu vestuário é adorno”. Tudo que as estrelas precisam é de roupas que revelem seus corpos – que sejam trapos. Nada as veste melhor do que o nú.

Esta beleza ideal, antes de mais nada é vendida como a juventude e tudo o que a juventude naturalmente carrega consigo. Assim, estrelas devem ser sempre belas, sempre apaixonadas e sempre jovens.

A Mitologia das Estrelas associa beleza moral à beleza física. O corpo ideal da estrela revela uma alma ideal. Já que a estrela tem o mesmo corpo dentro de seus personagens, na vida profissional e na vida privada, é lhe constituída as mesmas características morais em ambas.

A imagem da estrela é fabricada para que tenha e seja o sucesso em persona. As fotografias sempre retratam momentos de leitura, nobreza. O jornalista Robert Montgomery entendeu bem quando percebeu que a estrela deve se preocupar com a astronomia, gostar de refletir sobre a natureza, ainda debater sobre política e entender sobre filosofia. Saber lidar com sábios, engenheiros, médicos e professores universitários, ou ao menos parecer, é essencial para a construção arquetípica que mexe com os nossos sonhos e desejos.

A estrela cede beleza à personagem e recebe dela virtudes morais – um super caráter.

Embora tudo se passe na ficção, que é senão uma história privada destinada ao público, o encantamento acontece de forma brilhante.

E o público sente atração não pela sua virtude, esta é inalcansável para um profano, mas pelos seus gestos, gostos e vontades: o modo como ela toma xarope, de que lado da cama ela dorme, o nome de seu cachorro, etc. Tudo isso pode ser imitado.

A estrela é prisioneira da glória, ao mesmo tempo que o público faz de sua vida uma vida de cinema, rouba-lhe toda a sua liberdade privada, toma para ele. É agora objeto que vive seus sonhos – os sonhos da natureza humana.

Além do público, o Star System que fabricou a estrela determina a organização sistemática da vida privada-pública da estrela. Através de contratos, a estrela está condenada a nunca rir – por exemplo, no caso de Buster Keaton (fato real). Os contratos forçam uma pessoa ingênua a levar uma vida casta, pelo menos na aparência, na companhia de sua mãe, e inversamente outras a levarem uma vida em clubes noturnos, se mostrando e saindo com vários homens – escolhidos pelos produtores.

A estrela deve ser simples e esplêndida. Luxo que rodeia sua simplicidade – e luxo quer dizer consumo. Uma vida de bailes, de recepções e festas.

E tudo isso serve para fazer com que os espectadores gozem em sonho. O espectador, que trabalha e pena, se sente no direito apenas de ter essa vida mítica; aqui ela é real: encontros, prazeres, flertes, brincadeiras, fantasias, bailes de máscaras, jogos sociais. Uma vida sem fronteiras. Tomar um avião e atravessar continentes em busca de mais reconhecimento faz parte desta vida. Uma vida lúdica, vida de carnaval, de fotografias, mexericos, rumores, flores e confetes, que atinge sua plenitude e seu apogeu mítico nos festivais.

Os festivais foram inventados para consagrar e consolidar o reinado das estrelas. Festivais como VMB (MTV), O Prêmio Multishow de Música Brasileira (MultiShow), ou Festivais de Final de Ano (Rede Globo) são resíduos dos concursos internacionais de filmes com o propósito de exaltar as estrelas no imaginário popular – Cannes é o grande Olimpo, o templo dos deuses. É o encontro de estrelas – juntamente com semi-estrelas, pessoas ricas, escritores famosos, etc.

Cannes é o lugar onde retomamos nosso pensamento à possibilidade das estrelas realmente serem de carne e osso (embora ainda deuses). Saem de seus palácios para oferecer ao nosso olhar, olhar de mortais, e distribuem a prova concreta dessa encarnação: o autógrafo.

E a primeira coisa que se pergunta a quem volta de um festival em Cannes é: “Que estrela você viu?” só depois se lembra dos filmes. Com modéstia o iniciado diz: “Cameron Diaz”. E depois responde à pergunta-chave, que implica e explica toda a mitologia do festival: “Estava tão bonita quanto na tela, tão atraente, tão fresca?” etc.

É que o verdadeiro problema é o da confrontação entre mito e realidade, aparência e essência. Pelo cerimonial e pela notável encenação, o festival se destina a provar universalmente que as estrelas são fiéis à sua imagem.

Toda a economia interna do festival e suas manifestações cotidianas provam que não existe, de um lado, uma vida privada e banal das estrelas e, de outro, sua imagem gloriosa e ideal, mas, ao contrário, que a vida material das estrelas é um espelho da imagem cinematográfica, voltada a festas, prazeres, amor. A estrela é totalmente contaminada pela sua imagem, é forçada a levar uma vida cinematográfica. Cannes é o palco mítico da identificação entre imaginário e real.

As estrelas levam uma vida de festival: o festival leva uma vida de estrelas – uma vida de cinema.

É ai que mergulha toda a encenação, ritualização, refinada em espontaneidade, tão bem elaborada quanto na tela. Como observa Edgar Morin, criar a imagem é o termo exato “pois não se trata de posar para o público de Cannes, mas para o Universo inteiro, através da televisão, da fotografia e das notícias”.

E os paparazes, fotógrafos e jornalistas de plantão vivem das traças das estrelas e vão embora carregando na sacola o olhar de milhões de voyeurs. Captado pela iluminação dos flashes, será um alimento mítico universo afora. Aparência, beleza, eternidade forjada e o mito da estrela que vive a vida de estrela, a tela mágica, o cinema mágico.

As escadarias de Cannes são inundadas pela luz de projetores, dominadas por uma verdadeira multidão de fotógrafos. Ao pé da escadaria, num círculo de barreiras e guardas, divindades descem de automóveis de luxo. O grande Rito.

Essas fotografias são submetidas a um verdadeiro ritual de poses e comportamentos. Exprimem plenitude, alegria e o êxtase de viver: a face entregue e esplendorosa, o riso desinibido, que revela não o obsceno orifício da garganta, mas uma soberba e cerrada fileira de dentes. Estrelas sorriem para a vida e para cada um de nós, pessoalmente.

Não somente aí, mas os lugares profanos que as estrelas iluminam com sua presença também servem de alimento rico para os profanos.

Outro comportamento clássico são as poses afetuosas, enlaçadas e ternas que são testemunho de maravilhosas amizades e amores - nadam em amor. Não satisfeita, a teleobjetiva tenta surpreender os beijos e carinhos das estrelas. As fotografias buscam a profunda humanidade, o beijo na testa de uma criança, a ternura maternal diante dos fracos, inocentes e desprotegidos. Esse tipo de estrela mais humanizada é menos idolatrada, porém mais amada.

Os cultuadores das Estrelas, idólatras, fanáticos, religiosos, sonhadores, gostam mesmo das bobagens encantadoras que ilustram o mito da felicidade das estrelas: quando, por exemplo, Angelina Jolie dá uma de cozinheira e comenta sobre vários molhos - é bem familiar os seus resíduos em programas como "Mais Você", que passa quase todas as manhãs na Rede Globo.

Uma característica interessante é que uma estrela deve amar outra estrela para ser mais bem sucedida, exatamente como nas histórias mitológicas que conhecemos.

Assim estrelas devem se casar com estrelas (tantos exemplos que não é necessário citar), tal como reis, imperadores, deuses, famosos, aristocratas - já que apenas estes estão a sua altura.

A estrela sofre, se divorcia, é feliz, vive do e para o amor. Seus admiradores não sentem ciúmes de seus amantes, desde que esses nao a afastem do cinema - se o fazem os fãs enganados e traídos a amaldiçoam. A estrela pode saltar de amor a amor, na condição de permanecer fiel ao grande encontro de amor coletivo nas salas de cinema.

O seu casamento provoca as mais vivas simpatias, o divórcio uma simpatia ainda maior. Como observa Rosten, "em geral, a correspondencia das atrizes cresce após seu divórcio", pois ela é uma buscadora da felicidade e do amor, e nada a impedirá!

Obviamente, Hollywood introduziu nas aventuras reais doses de ficção, ou seja, fabricaram muitos casais, divórcios, romances e casos. Sempre visando um amor fictício entre "parceiros perfeitos". Obviamente, o mito das estrelas não nega sua sexualidade, mas deixa-a sempre subentendida, já que o sexo entre estrelas é divino, intocável - o transcendem. As estrelas só fazem amor obedecendo a um movimento superior e louco da alma. Enquanto isso, as fofocas sugerem, esperam e vivem dos "noivados" ou "violenta atração" - que serve de alimento às legiões do voyeurismo.

A estrela sente prazer pelo universo inteiro, tem a grandeza mística de prostituta sagrada. Ao mesmo tempo ela não é nada daquilo que parece, ela é apenas a sua imagem - seu duplo.

"Há um primeiro momento na evolução humana em que o Duplo corresponde a uma experiência concreta fundamental: entre os primitivos e entre as crianças, a primeira visão, a primeira consciencia de si é exterior a si. O "eu" é inicialmente um outro, um duplo revelado por sombras, reflexos, espelhos. O duplo acorda quando o corpo adormece, se liberta e se torna espírito ou fantasma quando o corpo nao desperta mais. Ele sobrevive ao corpo mortal. Os deuses se desembaraçam do comum dos mortais para se tornar grandes imortais. O duplo está na origem de um Deus."

No estado atual das civilizações, o nosso duplo está atrofiado. O duplo se aderiu à nossa pele, se tornou nosso "personagem", o papel pretensioso que representamos para os outros e para nós mesmos. Para exemplificar com a realidade, a estrela é subjulgada por seus admiradores através da imagem impressa em relevo por ela: perguntam se ela é exatamente idêntica a seu duplo na tela.

Desvalorizada por seu duplo, fantasma de seu fantasma, a estrela nao pode escapar ao seu próprio vazio a não ser pela diversão, e não pode se divertir a não ser pela imitação de seu duplo, mimetizando sua vida no cinema. Uma necessidade interior a leva assim a assumir por inteiro o seu papel. É preciso que ela esteja a altura de seu duplo. A estrela é envolvida por uma dialética do desdobramento e da reunificação da personalidade, como, aliás, o ator, o escritor, o político. Tal como a rainha que vive o seu papel.

Como o escritor, a estrela admira e adora a si mesma. Mas a maturidade favorece a glória do escritor ou do ator teatral. A da estrela é frágil, sempre ameaçada, sempre efêmera.

É por essa razão que as estrelas blefam, exageram, divinizam-se espontaneamente, não só pela "publicidade", como se costuma dizer, não só para igualar o seu duplo, para reanimar a fé em si mesmas. A estrela é levada a ser o suporte de seu próprio mito.

Agora convém examinarmos o culto em si mesmo:

O amor do fã não pode possuir, nem no sentido sociológico, nem no sentido físico do termo. O amor pela estrela não provoca ciúme ou inveja, é partilhável, pouco sexualizado, ou seja, adorador. A adoração implica uma relação verme-estrela. Certamente esta relação se estabelece num amor verdadeiro entre dois seres, em toda a sua reciprocidade. O adorador quer que a adorada também seja uma adoradora. Por outro lado, o verme quer ser estrela.

O fã, por seu lado, aceita ser pura e simplesmente verme. Até desejaria ser amado, mas sem perder a humildade. É esta desigualdade que caracteriza o amor religioso, essa adoração não-recíproca, embora eventualmente recompensada.

As cartas dirigidas às estrelas partilham de toda essa adoração. Essas repetem à exaustão as mesmas frases: "Você é minha estrela preferida... vi seu último filme seis, sete, oito vezes - raros casos 130 vezes!"

As cartas são louvor, arrebatamento, êxtase, profissão de fé. A linguagem do amor se mistura com a da adoração - mas o que seria a paixão, senão adoração? Nas cartas são escrito poemas, declarações, mas raramente propostas amorosas - o profano sabe o seu lugar, e não ousaria. Também dizem de seus fetiches e do que mais gostaram no novo visual da estrela - bigode, roupas, cabelos, etc.

É muito comum os cultuadores de estrelas oferecerem presentes às estrelas. Costuma-se dar presentes destinados ao corpo das estrelas (roupas, alimentos) e presentes-símbolos (pétalas, amuletos, bonecas). Mas há registros de loucuras praticadas pelos adoradores, como o caso da adolescente que ofereceu a Norma Shearer pedaços da pele retirados de seu próprio corpo.

Um dos fatos mais interessantes é que em grande parte das cartas é predominante os pedido de conselhos que os adoradores fazem para as estrelas. Como em todos os cultos, cada fiel gostaria que seu deus o escutasse e lhe respondesse. A correspondência traz às estrelas confidências múltiplas, segredos sentimentais, familiares e profissionais. Alguns fãs retomam semana após semana a confissão interrompida, entregando assim sua vida, em fatias, às estrelas.

A estrela, em troca, deve enviar consolo ou conselhos, ou mesmo auxílio e proteção. A estrela é tratada, e deve se comportar, como um grande sábio, conhecedor profundo de assuntos cotidianos, higiênicos, alimentar, morais e até metafísicos. As estrelas na maioria das vezes respondem tal como um horóscopo para seus adoradores, mas ainda há aqueles que se passam por um tipo de deus - ordenando o certo e o errado, e ditando as regras. Tanto num modelo quanto no outro, as estrelas aproveitam a oportunidade para manifestar o que pensam sobre a natureza humana. Mas sempre com grande modéstia e humanidade.

O fiel quer consumir seu Deus, tal como um religioso quer devotar-se ao seu santo padroeiro. Observamos na História, desde os banquetes canibais, onde se come o familiar mais velho, e os banquetes totêmicos, nos quais se come o animal sagrado, até as comunhões e eucaristias religiosas, todos os deuses são feitos para serem comidos, isto é, incorporados, assimilados.

A 1° assimilação é o conhecimento. O fã quer saber tudo, ou seja, quer possuir, dominar e digerir mentalmente a imagem integral do ídolo. Este conhecimento não chega a ser analítico, mas um incorporamento dos mexiricos, rumores e indiscrições numa saborasa deglutição.

Daí a enorme quantidade de fofocas hollywoodianas. Esses mexericos não são um subproduto, mas o plancton de que se alimenta o star system. Os jornalistas de cinema se interessam mais pelas vedetes que pelos filmes, e mais ainda pelo falatório sobre as vedetes que por elas mesmas. Farejam, descobrem, apropriam-se do rumos e, em último caso, o inventam. A função das fofocas é não apenas transformar a vida real em mito e o mito em realidade, mas desvendar rigorosamente tudo, e tudo oferecer a uma curiosidade insaciável.

Cuidados com a beleza, toilettes, cosméticos, preferências alimentares ou esotéricas, mudanças, mobiliário, animais domésticos, o peso das estrelas, marca de suas cuecas, a medida dos peitos, detalhes íntimos, são a matéria disso que se vêem em tantos artigos com esta abordagem.

Para a moda, estas confissões tem um poder inestimável. É a partir delas que se produzem e conduzem todo o repertório "atual" que se tornará elegante, fino, bélo, moderno, etc. É a necessidade fetíche que as pessoas tem em possuir algo semelhante a um Deus.

A fotografia é o alter ego das estrelas, lá está a sua imagem - aquilo que encanta seus adoradores. Motivo pelo qual cerca de 90% das cartas pedem alguma fotografia. Os adoradores sabem disso, mas não deixam de adorar por saber, ao contrário, dizem carregá-la na carteira ou no bolso, assim podem comtemplá-la e adora-lá a qualquer momento.

O maior comércio no culto das estrelas se dá através das fotografias. Os adoradores acumulam, trocam, olham, compram. E o autógrofo é peça essencial da fotográfia que lhe imprime as marcas do deus na sua encarnação na fotografia - sempre compostas pela assinatura e mensagens carinhosas intimistas.

Os adoradores também fazem pedidos nas cartas, entre alguns: sabonete usado, papel usado para limpar baton, pérolas, caixa de fósforo, telegrama a um primo pelo seu aniversário, grampos de cabelo, banjo, etc.

Assim, os aspectos fundamentais do culto às estrelas são o fetichismo, a apropriação, a assimilação e a devoção. São as diversas maneiras de identificação neste culto.

Mais intensamente que em qualquer outro espetáculo, o cinema implica um processo de identificação psíquica entre o espectador e a ação representada. O espectador vive, no nível psíquico, a vida imaginária, intensa, valorosa, apaixonada dos heróis dos filmes.

Essa identificação segue dois caminhos: primeiro, a projeção-identificação apaixonada que se dirige a um parceiro do sexo oposto. Segundo, o que é mais comum, uma identificação dirigida a um alter ego, isto é, uma estrela do mesmo sexo e da mesma idade e região natal. Como revelam todas as pesquisas feitas sobre esse tema, os rapazes tendem a preferir as estrelas masculinas, e as moças, as femininas.

É bom deixar claro que os adoradores tem consciência, sabem exatamente por que preferem, ou por que se identificam com determinada estrela.

O que acontece é que esta identificação iniciada na sala de exibição prossegue oniricamente do lado de fora do espetáculo. Mas ao término do filme, este sonho se confronta com a realidade. O espectador se sente minúsculo e só, e vê a estrela grande e majestosa. Assim, é incontestável, na mente deste homem, tornar-se um adorador daquilo que gostaria de ser.

Alguns adoradores sentem-se tão humildes diante a estrela, que não ousam se identificar com ela. Outros, sabem que podem, ao menos, continuar com o seu sonho, e então procuram suportes míticos para a identificação - imitando a estrela. Assim se inicia esta religião moderna.

O mimetismo onírito reduz-se a um mimetismo atrofiado: segue-se o regime alimentar e corporal da estrela. Adotam-se a maquiagem e os cosméticos que ela usa. E por último, seu comportamento e tiques.

Observe as novelas mais recentes e busque alguma semelhança com as roupas, valores morais e comportamentais, principalmente de jovens, especialmente mulheres - não poderia me esquecer daqueles que já não são jovens mais denominam-se um espírito jovem -, verá o espetáculo simulado na realidade.

Em última análise, não é o talento, nem sua ausência, a indústria cinematográfica nem sua publicidade, mas a necessidade que dela se tem que cria a estrela. É a miséria da necessidade, é a vida tediosa e anônima que deseja ampliar-se até as dimensões das vidas de cinema. A vida imaginária da tela é o produto dessa necessidade real. A estrela é a projeção dessa necessidade.

Morin observa que o homem sempre projetou em imagens seus desejos e temores. E projetou sempre na sua própria imagem - em seu duplo - a necessidade de superar a si mesmo na vida e na morte.

A estrela submerge no espelho dos sonhos e emerge na realidade tangível. O filme, máquina de duplicação da vida, apela aos mitos, repondo em ação os velhos processos imaginários de projeção e identificação de que são feito os deuses.

Tudo começa com a magia do cinema, e com o tempo o despertar deste instinto humano se projeta também nos astros da música - cujo nome fala por sí só.

As estrelas respondem a necessidades antropológicas profundas que se exprimem no mito e na religião. E isto foi percebido no estágio da civilização capitalista por alguns, que passaram a utilizar-lhe como capital e mercadoria.

Muitos estudiosos costumam dizer que é "Bobagem, sem dúvida!", da qual se desvia o olhar circunspecto sociológico, e é por isso que poucos se atreveram a estudar as estrelas. Mas nossos sábios agem pouco sabiamente ao recusar tratar seriamente as bobagens. A bobagem é também o que há de mais profundo no homem. Por trás do star system não está apenas a imbecilidade dos fãs, a falta de criatividade dos cineastas, os acordos comerciais dos produtores. Está o coração do mundo. Está o amor, outra bobagem, outra humanidade profunda.


Nenhum comentário:

Postar um comentário