Os
avanços das técnicas e concepções da neurociência do nosso tempo colocam em
xeque ideias ultrapassadas que o conhecimento popular ainda carrega consigo. Entre
estas, estão a afirmação de que nós só usamos 10% de nosso cérebro ou, também,
que temos 100 bilhões de neurônios.
Mas
quanto estas afirmações estão corretas?
Pensando
nisso, foi realizada uma pesquisa perguntando a estudantes do ensino médio e
universitário sobre neurociência. Dentre as 95 afirmações realizadas, que
tinham como opção apenas duas respostas, sim ou não, foi questionado se usamos
apenas 10% do cérebro. Como resultado, quase 60% dos 2,2 mil estudantes
entrevistados responderam que sim, estava correta.
Mas o fato é que esta afirmação está incorreta. Há muito tempo já é claro para a neurociência o conhecimento de que usamos todo o nosso cérebro o tempo todo.
Mas o fato é que esta afirmação está incorreta. Há muito tempo já é claro para a neurociência o conhecimento de que usamos todo o nosso cérebro o tempo todo.
Um
estudo publicado no European Journal of
Neuroscience em janeiro deste ano (2012) propõe que este mito tenha surgido
de uma afirmação apresentada em 1979 pelo neurobiólogo canadense, David Hubel,
que recebeu o prêmio Nobel de Fisiologia em 1981.
Hubel
afirmava haver no cérebro 100 bilhões de neurônios e 1 trilhão de células da
glia. Por ser uma pessoa pública e importante, quando repetida em outras
publicações, a informação se disseminou. Como os neurônios são as unidades
processadoras de informação – e representariam só um décimo das células
cerebrais -, concluiu-se que os outros 90% do cérebro não seriam usados para se
caminhar, pensar ou dormir.
Tão
importante quanto as respostas destas perguntas, é descobrir qual o processo
que leva afirmações falsas a serem tomadas como verdadeiras.
O
fato é que esse resultado incomodou Suzana Herculano-Houzel, neurocientista, chefe
do laboratório de Neuroanatomia do ICB-UFRJ, que buscou na literatura científica
a fonte original desses números e não encontrou.
Este
foi o estopim para Roberto Lent, neuromorfólogo e professor de neurociência do
Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ, que escreveu um livro cujo título é
“100 Bilhões de Neurônios”, rever seus conceitos e na edição seguinte publicar
“100 Bilhões de Neurônios?”.
A
história começou quando Suzana, que havia colaborado para o livro de Lent,
levou a dúvida até ele, questionando como Lent sabia que são 100 bilhões de
neurônios. E na realidade Lent não sabia, assim notou-se que ali existia um
tipo de crença neste conhecimento. Esta crença se estrutura num tipo de
conhecimento conhecido como tradição, algo que nos vem transmitido por um tipo
de osmose cultural, que, supostamente, todo mundo sabe e todo mundo diz. Realmente,
muitos artigos e livros traziam - e trazem - esta informação. Mas não diziam de
onde a haviam extraído. Eram dados aparentemente intuitivos que se consolidaram
e as pessoas citavam sem pensar muito.
Um
dos motivos pelo qual não se encontram facilmente esses números é que não é
simples contar as células cerebrais. Além de ser um órgão grande – o cérebro
humano tem cerca de 1200
gramas e o encéfalo, 1500 -, sua arquitetura é complexa.
Áreas
distintas contêm concentrações variadas de células e a técnica então disponível
para contá-las, a estereologia, só funciona bem para regiões pequenas, com
distribuição celular homogênea. Sua aplicação na contagem das células cerebrais
gerava estimativas pouco confiáveis, que variavam até 10 vezes para algumas
regiões e deixavam o cérebro humano com algo entre 75 bilhões e 125 bilhões de
neurônios.
Visando
o problema, Suzana teve uma ideia. Propôs tornar homogêneas as regiões cerebrais
antes de contar suas células. A ideia era desmanchar as células. A principal
razão da heterogeneidade do encéfalo é que as células e o espaço que as separam
variam de tamanho. Após dissolver as células, a questão estaria resolvida,
contanto que fosse possível preservar seus núcleos, a porção mais central - que
abriga o DNA. Assim, como é conhecido que cada célula cerebral possui só um
núcleo, seria possível contar. A soma dos núcleos daria a quantidade total de
células.
Em seguida, corantes que marcam apenas os neurônios permitiriam distingui-los de outras células cerebrais.
Em seguida, corantes que marcam apenas os neurônios permitiriam distingui-los de outras células cerebrais.
Usando
compostos químicos que preservam as estruturas das células, a neurocientista
conseguiu destruir apenas a membrana externa sem danificar o núcleo
e, juntamente com Lent, descreveu a técnica em 2005 no Journal of Neuroscience, concluindo: “É um método inteligente, simples
e fácil de usar e replicar.”
A
máquina que transforma pedaços de cérebro em uma sopa de núcleos de neurônios é
chamada de Fracionador Turbinado.
A
contagem das células revelou que o cérebro humano possui, em média, 86 bilhões
de neurônios - número 14% menor que o estimado antes.
Ao
mesmo tempo, existem críticas diante os resultados encontrados. Como foram
utilizadas amostras de pessoas de 50
a 71 anos, cedidas pelo banco de cérebros da USP, quem
sabe indivíduos na faixa etária dos 20 anos não tenham 100 bilhões de
neurônios, que se perderiam com o tempo.
Apesar
disso, os resultados de Suzana e Lent levaram algumas ideias a respeito da composição
e estrutura do cérebro, antes tidas como verdades absolutas, a serem
questionadas. É fato que tanto os neurocientistas quanto a população em geral
ainda tem uma visão distorcida sobre as quantidades e os significados dos
neurônios e de outras células no sistema nervoso central.
Muitos
ainda vêem o cérebro humano como especial e superior aos das demais espécies de
animais. No entanto, a cada dia que passa, estudos vêem indicando que a maior
parte desses neurônios, tanto em homens quanto em roedores, não estão no
cérebro, mas sim no cerebelo. Apesar do cérebro possuir quatro vezes mais
outros tipos celulares, como as células glias. Essas células, antes
consideradas apenas suporte físico de neurônios, desempenham outras funções
essenciais: auxiliam na transmissão dos impulsos, nutrem os neurônios e
defendem o sistema nervoso central de microorganismos invasores. E claro,
ocupam espaço. O cérebro e cerebelo são formados por tipos diferentes de
neurônios, que se conectam de modo distinto. E, resumidamente, colocando em uma
balança e comparando o número de neurônios do homem, como, por exemplo, dos
macacos, a constante de proporcionalidade é a mesma. Ou seja, através deste
ponto de vista, não temos nada de especial.
Assim,
contrariamente do que imaginava-se, estudos indicam que a evolução não
privilegiou apenas o desenvolvimento do cérebro. Constatado pelo mesmo grupo do
Rio, mas em outro trabalho publicado, entre os mamíferos, a classe de animais a
que pertencem os seres humanos, cérebros e cerebelo ganharam neurônios no mesmo
ritmo. Esse resultado, segundo o neuroanatomista Alessandro Vercelli,
da Universidade de Turim, fortalece as pesquisas que indicam que o papel do
cerebelo não se restringe apenas ao controle dos movimentos. Ele é fundamental
para o aprendizado, memória, aquisição da linguagem e o controle do
comportamento e emoções. Cada vez nos é indicado que o cerebelo participa de
processos que antes associávamos apenas a algumas regiões específicas como o
córtex cerebral, assim, colocando em revisão mais um mito da neurociência.
Caso
queira se aprofundar nas informações pictográficas sobre o que foi discutido a
respeito do cérebro, um vídeo com o professor Roberto Lent:
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