terça-feira, 10 de janeiro de 2012

ESTADIA DA LIBERDADE

                                       
Todos nós, seres humanos, compartilhamos a estadia em nosso mundo. Estar no mundo, obviamente, é característica inerente a todos nós que aqui nascemos.

Mas o fato de estarmos aqui acaba fazendo com que passemos a pertencer a este lugar e, assim, não apenas estar no mundo, mas ser do mundo – e o mundo passa a ser muito mais do que o planeta em que vivemos.

Mergulhamos na realidade aqui existente, sentindo-nos parte dela e responsáveis pela sua manutenção. A sociedade – seja ela qual for – nos dá regras, modelos de comportamento e até de pensamento, praticamente nos ‘engolindo’ desde o momento em que entramos em contato com ela. Através da facilidade de adaptação, essa vida torna-se praticamente irrecusável.

Estar no mundo, por outro lado, implica transitoriedade, mobilidade. Mas este estar a que me refiro também não é aquele a que os espiritualistas se referem como apenas uma parte da vida – pois a outra está no além-Terra. Não é viver sem se apegar aos bens e outras coisas materiais, com o pensamento elevado aos céus, como pregam estes religiosos.

Este estar no mundo é a condição para podermos ser quem escolhemos, e não quem somos condicionados a ser. Estar no mundo é estar com o mundo e com os outros, é transitar pelas vias da sociedade e enxergar além dela, não estando preso ao que quer que tente nos imobilizar, nos entorpecer, nos adaptar.

Esta condição é possível ao nos darmos conta de que, sendo seres inacabados (Para saber mais, ler o texto “A Criação Inacabada”), nunca estamos “prontos”, não somos, mas estamos sendo. E não é possível estar sendo se não tivermos disponibilidade para mudar. Devemos estar predispostos à mudança, à aceitação do diferente, a intervir na realidade.

Conscientes desse nosso inacabamento, nós podemos ir além dele.

“Só somos porque estamos sendo.” - Paulo Freire 

Como seres que estão no mundo e que, por isso, fazem parte dele, somos, consequentemente, seres condicionados. Nossa presença no mundo não se faz no isolamento e recebemos influências das forças sociais, familiares, culturais e históricas que nos cercam. 

Ao nos percebermos no mundo, vemos que nossa presença não precisa ser de quem a ele se adapta, mas a de quem nele se insere. Experiencia-se a estadia no mundo enquanto ser cultural, histórico, inacabado e consciente do inacabamento.

Isso nos leva a outra consideração importante: a de que o que fazemos no mundo não é predeterminado, de que nosso destino não está “escrito nas estrelas”, mas é feito por nós. Enquanto estamos sendo, estamos vivendo, construindo nossa própria História, que não é certa, mas escolhida por nós a cada nova opção que fazemos. Como diz o educador Paulo Freire:

“Gosto de ser homem, de ser gente, porque sei que a minha passagem pelo mundo não é predeterminada, preestabelecida. Que o meu ‘destino’ não é um dado mas algo que precisa ser feito e de cuja responsabilidade não posso me eximir.”

Nem somos seres simplesmente determinados nem tampouco livres de condicionamentos que nos marcam e a que nos achamos referidos. A percepção de inconclusão – tanto de nós como seres humanos inacabados quanto de nosso destino como uma história em incessante construção – nos leva a um permanente movimento de busca, proporcionado pela abertura à dúvida e inquietação de quem não se acha certo das certezas estando, por isso, sempre aprendendo.

Aprender é construir, reconstruir, constatar para mudar, o que não se faz sem abertura ao risco e à esperança crítica – não a de quem espera que algo simplesmente (magicamente) aconteça, mas de quem espera que aquilo que faz faça com que algo aconteça.

Sei que ignoro e sei que sei. Por isso, posso tanto saber o que ainda não sei quanto saber melhor o que já sei. Mais que isso, sei que tenho opções, sendo capaz de analisar, comparar, avaliar, decidir, optar.  

Sei que ignoro e sei que sei.

A capacidade de decisão, de escolher entre isto e aquilo, só se adquire exercitando – só se aprende a decidir decidindo e assumindo as consequências das decisões. Só assim podemos passar a decidir o que fazer de nosso próprio destino e nosso próprio ser, só assim podemos ter autonomia para escolher - tarefa mais complexa e geradora de saberes do que a de simplesmente se adaptar.

Ninguém é autônomo primeiro para depois escolher seus caminhos. A autonomia vai se constituindo na experiência de inúmeras decisões que vão sendo tomadas ao longo do caminho, enquanto se está no mundo. Já dizia Paulo Freire que ninguém é sujeito da autonomia de ninguém, e tampouco alguém amadurece, de repente, aos 25 anos. Se amadurece todo dia, ou não.

Quem vê os fatos como pré-determinados vive como se a vida fosse um Karma, se limita diante as incontáveis possibilidades que ela nos dá. É assim que alguém se autodemite de sua posição de ser ativo, e aceita uma posição de mero observador, olhando para as coisas como imutáveis, não podendo ser alteradas.

Viver plenamente é se saber ativo em relação ao mundo e à vida. É estar no mundo, sendo capaz de não achar-se demasiado inserido para não enxergar a realidade nele vivida como sendo o próprio mundo, nem demasiado afastado que se torne incapaz de entender a humanidade e aprender com as coisas presentes no mundo. 

Podemos saber-nos seres condicionados, mas sabendo igualmente que somos capazes de ultrapassar o condicionamento, deixando-nos expostos às diferenças, recusando posições extremistas ou dogmáticas, percebendo que há várias percepções da mesma realidade para ter uma nova visão do contexto, escutando o outro para aprender com ele, ou mesmo para melhorar os argumentos e adequá-los ao outro. Devemos estar disponíveis ao mundo e a tudo que ele tem a nos oferecer.

“Estar disponível é estar sensível aos chamamentos que nos chegam, aos sinais mais diversos que nos apelam, ao canto do pássaro, à chuva que cai ou que se anuncia na nuvem escura, ao riso manso da inocência, à cara carrancuda de desaprovação, aos braços que se abrem para acolher ou ao corpo que se fecha na recusa. É na minha disponibilidade permanente à vida a que me entrego de corpo inteiro,(...) que vou aprendendo a ser eu mesmo em minha relação com o contrário de mim.” – Paulo Freire

Não é fácil viver a posição humilde e aberta de estar no mundo, que nos faz assumir e proclamar nossos próprios equívocos, reconhecer e anunciar as superações que temos. Exige ainda uma postura crítica, além de vigilância constante sobre nós próprios para evitar simplismos, facilidades, comodidades, incoerências. É preciso que tudo que se faz seja pensando sobre o fazer e não meramente feito ao acaso.

Estar no mundo, enfim, é estar aberto às inúmeras possibilidades que a vida oferece e, consciente delas e de tudo o que as envolve, ser capaz de escolher entre elas. Assim como o próprio mundo está inacabado, onde há inacabamento há sempre movimento: há sempre o que fazer, o que ensinar, o que aprender.

Um comentário:

  1. Relativemos até onde, ou, a partir de onde podemos começar a relativizar?
    As questões morais devem ser extintas para tanto?
    As pessoas que atrapalham a evolução estão atrapalhando alguém?
    Acho que nos vemos, até mesmo os ateus, como seres moralmente acima do nosso próprio habitat.
    O habitat é nosso! Não somos dele posto que o transformamos de imediato e não ele que nos transforma em milhares de anos.
    Esse conceito impede que nos vejamos como fruto do habitat em que vivemos e assim somos incapazes de nos entender segunda as mesmas leis que usamos para interpretá-lo.
    Se fossemos nos auto interpretar segunda as leis da física veríamos que o mais natural seria entender que dois corpos não ocupam o mesmo espaço, que toda força para existir exige a mínima resistência, etc.
    Mas e aí?
    O que explica a Liberdade segundo as leis da física se não relativarmos a moral a partir de algum ponto?
    Pois se não relativizarmos não há certo e errado e a própria liberdade não se justifica como o princípio, independentemente do quanto intervimos no espaço alheio.
    Todo mundo tem espaço e tempo para executar suas ações em vida; a liberdade é garantida quando não há interferência direta de um ou mais abitantes no espaço de outros. Não deve haver força que se faça para mover um ser que não si mesmo.
    Mas se somos naturais, por que não usamos os conceitos da cadeia produtiva como a lei do mais forte, para nos organizarmos e deixarmos de lado esse lance de liberdade?
    Seria natural isso, não?
    Até agora foi assim, não?

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