O amor gerado na raiz da fé

Existe uma realidade que facilmente todos enxergam de que nada pode ser mais importante para uma pessoa do que aquilo que ela ama.

Sem dúvida, não existe qualquer outro valor que se possa pôr acima deste.


Porém, o que é amar?

Suponhamos que eu ame a música, mais que qualquer outra coisa em minha vida.
Eu poderia exaltar a música, que é a coisa que mais gosto, com todo o "meu coração e minha alma".

Desta forma, já que o amor é o valor mais forte que existe, isso me dá o direito de obrigar meus filhos a praticarem instrumentos dia e noite, ou impor a educação musical a todos do país, ou ameaçar a vida de quem não tenha amor à música?

Alguns torcedores de times de futebol declaram ter um amor tão grande por seus times que os leva a odiar os outros times e seus torcedores, de tal modo que não é difícil imaginar os jogos como quase-guerras, cercados de ofensas, injúrias e provocações por todos os lados.

Outro tipo é o amor religioso, que poderíamos chamar de um modo de apaixonar-se.
Não é por acaso que a linguagem do amor romântico e da adoração religiosa são tão parecidas.

Desde crianças, ouvimos que devemos "amar a Deus acima de todas as coisas" e, se o amo, não posso questioná-lo ou ter dúvidas sobre esse sentimento ou se, ao menos, tenho motivos para o amar.
Afinal de contas, dizem também que "Ele te ama" e deu seu próprio filho por você, para te salvar de pecados que você nem sequer cometeu!

O mínimo que se pode fazer é retribuir amando-o também e sendo grato a Ele...
Apenas o fato de pensar sobre isso já seria uma afronta.


O fato de tanta gente amar sua religião, tanto quanto ou mais do que todas as outras coisas, é realmente um fato a ser ponderado.

As Cruzadas e "Guerras Santas" nos mostram isso de modo indubitável.

A sociedade associa e tende sempre a valorizar a irracionalidade quando se trata de amor, e o que sustenta isso é apenas a fé, esta que é transmitida a nós no decorrer de toda a nossa experiência.

E é este próprio sentimento vindo apenas do que nos dizem - simulacro -,  que é dissimulado como verdade, interiorizado e que julga a si próprio. Assim, não temos como escapar dessa redoma de pensamentos sincronizados e transmitidos incessantemente a todos nós.


Diz-se que "o amor é cego" e, assim sendo, muitas vezes leva à tragédia. Mesmo assim, considera-se  aceitável e "grande" este tipo de amor, não?

Quando dizem que o amor é cego, é porque a ideia de avaliação deveria estar fora de cogitação quando se ama. E digo da avaliação de sentir o amor, e não de rejeitá-lo e mesmo assim continuar sentindo.

Se alguém diz que ama a namorada porque simplesmente não consegue viver sem ela, ou não pode nem pensar em algo pior do que não tê-la, sentir seu perfume, ouvir sua voz, sentir a sensação de estar próximo a ela ou ainda apenas tê-la, certamente seria mais romântico do que se eu disser que amo meu namorado porque suas qualidades são inúmeras e superam em muito os defeitos,  que temos os mesmos interesses, que sua inteligência é do nível que eu aprecio e que sei que só tenho a ganhar com essa relação.

O caminho mais curto para o coração de alguém é justamente dizer que se apaixonou porque não pôde evitar. A pessoa não está sendo livre para sentir.


O filósofo Daniel Dennet diz que achou ter sido uma grande sorte quando destruíram o World Trade Center em 11 de Setembro ao invés da Estátua da Liberdade.
Claro que ele não se sente feliz pela morte de tantas pessoas inocentes e considera a destruição das Torres Gêmeas muito pior do que uma possível destruição da Estátua da Liberdade.

O que ele quer dizer é que a Estátua da Liberdade é um símbolo de democracia sagrado para todos os americanos e se fosse ela quem fosse destruída a maioria dos americanos se entregaria à convicção de que isso mereceria uma vingança.
Mas o World Trade Center era um símbolo mais apropriado para a ocasião.

Destruíram o símbolo da Globalização, não a Senhora Liberdade, por isso não significou tanto para eles, como um símbolo.

Uma profanação do querido símbolo nacional dos americanos, das aspirações de liberdade e democracia, provavelmente geraria uma fúria que comprometeria uma reação comedida, gigantescamente maior do que a que aconteceu e ainda acontece.

O "status quo" do ser humano coloca mais valor aos símbolos do que à própria coisa. Desta forma, pessoas desconhecidas valem menos do que um estátua repleta de propriedades significantes.


Em todos os casos, o amor leva as pessoas a agregarem um certo valor ao que amam. É como se a namorada, a religião, o time, a música, ou uma estátua, fossem despidos das qualidades que tem realmente e vestidos com um manto de significados, propriedades e superioridade.

Esse é o perigo de amar os símbolos: eles passam a ser sagrados. No entanto, esta é condição única - ou ausência de condição - que as pessoas têm ao enxergar o mundo. A sua verdade é a sua compreensão - esta que não ultrapassa os valores e símbolos, que por si só são todos falsos.

Esse tal amor, movido pela fé, que envolve as pessoas, consiste apenas em uma incapacidade muito infeliz.

Pode até não haver nada melhor que o amor, mas antes é preciso aprender a amar.