“O instinto de caça tem (uma) (...) origem remota na evolução da raça. Os instintos de caça e pesca se combinam em muitas manifestações (...). A sede de sangue humana faz parte de nosso lado primitivo, e é justamente por isso que é tão difícil de ser erradicada, especialmente quando uma luta ou uma caçada é prometida como parte de divertimento.”
Nas noites de quarta feira e nas tardes de domingo, praticamente o ano todo, abandonamos tudo para observar as pequenas imagens em movimento de 22 homens – colidindo uns com os outros, caindo, levantando e chutando um objeto alongado feito com a pele de um animal. Tanto jogadores, quanto os espectadores sedentários são levados ao êxtase ou ao desespero pelo caminhar do jogo. Torcem ou resmungam em uníssono, parados diante das telas de vidro.
Pode até parecer estúpido descrevendo desta forma, mas quando se adquire o gosto pela coisa, é difícil resistir.
Os atletas correm, saltam, batem, lançam, deslizam, chutam, derrubam – e há uma emoção em ver os humanos fazerem tudo isso tão bem. Eles brigam entre si até caírem no chão. Gostam de agarrar, tacar ou chutar um veloz objeto redondo. Todos deliram por aquilo que é chamado “gol’.
O trabalho em equipe é quase tudo, e admiramos como as partes se encaixam para formar um todo triunfante.
Mas essas não são as habilidades com as quais a maioria de nós ganha o pão de cada dia. Então por quer nos sentiríamos compelidos a observar? Por que essa necessidade aparece em todas as culturas? (Os egípcios, persas, gregos, romanos, maias e astecas antigos também jogavam bola. (O pólo vem do Tibete.)
CONFLITOS SIMBÓLICOS
Há craques dos esportes que ganham cinqüenta vezes o salário anual do presidente Lula. Outros são eleitos para altos cargos depois de aposentados. São ídolos, heróis nacionais.
Mas por que exatamente? Há algo nesta questão que transcende a diversidade dos sistemas políticos, social e econômico. Algo que tende a nos atrair.
A maioria dos esportes mais importantes está associada a uma nação ou cidade (grupo), e eles contem elementos de patriotismo e orgulho cívico. O nosso time nos representa - o lugar de onde viemos, o nosso povo – contra aqueles outros sujeitos de uma lugar diferente, habitado por um pessoal desconhecido, talvez hostil. (Embora saibamos que a maioria dos “nossos” jogadores, em campeonatos nacionais, não são realmente do lugar onde jogam – vão por dinheiro.
Os esportes competitivos são conflitos simbólicos, mal disfarçados. Isso não é uma idéia nova. Os cherokeen chamavam sua antiga forma de lacrosse de “o irmão pequeno da guerra”.
Parece que a beleza do futebol está em declarações como: “Os jogadores de futebol possuem um espíritos de luta claro e luminoso que é o próprio povo.”
Estamos perto da Copa Mundial de Futebol. Dunga é o novo técnico da seleção Brasileira, e é um claro exemplo do signo existente no futebol, quando bate no peito e se considera um guerreiro – o que já virou sua marca popularesca.
Um sentimento freqüentemente citado do falecido técnico de futebol profissional Vince Lombardi é que o importante é vencer. Ou ainda há aqueles que dizem que: “Perder é como morrer”.
Na realidade, fala-se de ganhar ou perder uma guerra tão naturalmente como falamos de vencer e perder um jogo.
Em uma determinada propaganda televisiva de recrutamento do Exército em que um tanque destrói outro tanque, aparece o slogan do comandante do tanque vitorioso dizendo: “Quando vencemos, todo o time vence – e não apenas uma pessoa”.
Parece muito claro esta conexão entre o esporte e o combate.
FANÁTICOS
Sabe-se que a palavra fãs, vem da abreviatura de “fanáticos”. Estes mesmos que em nome do esporte têm cometido agressão, e até homicídio quando escarnecidos por conta de um time perdedor, um juiz que pareça ter cometido alguma injustiça ou toda a motivação que o esporte nos excita.
Em 1985, o primeiro-ministro britânico foi obrigado a denunciar o comportamento embriagado e desordeiro dos fãs de futebol britânicos que atacaram um contingente italiano por ter o atrevimento de torcer pelo seu próprio time.
Em 1969, depois de três jogos difíceis de futebol, tanques de San Salvador invadiram portos e bases militares em Honduras.
Cito exemplos fora do Brasil, já que basta assistir aos noticiários regularmente para perceber que este é o país com o maior índice de violências em futebol do mundo, embora seja o país do futebol artístico.
O grande problema no nosso país são as torcidas organizadas, que estão por trás de dar o passo inicial para toda esta liberação do instinto reprimido que os torcedores distribuem no esporte. O que me lembra muito o filme Hooligans.
Hooligans mostra claramente que este instinto de combate não vem do esporte, mas sim da natureza humana. E este instinto, mesmo que mascarado, no esporte, acompanha gangues nas escolas e nas comunidades. Lutam pelo prazer, independente do que lhes possa esvaziar esta satisfação.
Os homens das tribos afegãs jogavam pólo com as cabeças cortadas de antigos adversários. E há seiscentos anos, no lugar em que é hoje a Cidade do México, havia uma quadra de jogar bola em que nobres magnificamente vestidos observavam a competição de times uniformizados. O capitão do time perdedor era decapitado, e os crânios dos outros capitães perdedores eram exibidos em grades.
QUAL O PROPÓSITO DE TORCER?
Vamos supor que você esteja mexendo à toa no botão da sua televisão e encontre uma competição em que não tenha nenhum investimento emocional particular – vamos dizer, uma partida amistosa de voleibol entre Myanmar e Tailândia. Como é que você decide torcer? Mas espere um minuto: para que você decide para quem torcer? Por que não se divertir apenas observando o jogo?
A maioria de nós tem problemas com essa postura distanciada. Queremos tomar parte da competição, queremos nos sentir membros do time. O sentimento simplesmente nos arrebata, e começamos a torcer: “Vamos, Tailândia!”
Parece que a vitória ou o prestigio do passado conta muito na escolha de um time, juntamente com a origem geográfica do time da cidade natal do torcedor. Mas ainda é o torcer que é importante.
Como Nietzsche diria:
“O torcedor ainda preferiria torcer pro nada, a não torcer nada” (Modificação da frase original de Nietzsche, adequada para o contexto)
Deseja-se estar envolvido em algo parecido com uma guerra pequena, talvez segura e bem- sucedida.
CASO ABDUL-RAUF: PATRIOTISMO
Em 1996, Mahmoud Abdul-Rauf, então integrante da defesa dos Denver Nuggerts, foi suspenso pela Associação Nacional de Basquetebol por ter se recusado a ficar de pé para a execução obrigatória do hino nacional.
A bandeira norte-americana representava para ele um “símbolo de opressão” ofensivo às suas crenças muçulmanas. Embora não partilhassem as crenças de Abdul-Rauf, a maioria dos outros jogadores apoiava o seu direito de expressá-las.
Harvey Araton, um ilustre comentarista esportivo do New York Times, ficou perplexo:
“Tocar o hino nacional num evento esportivo é, vamos ser francos, uma tradição completamente idiota no mundo de hoje”, explica, “em oposição aos tempos em que começou a ser praticada, antes dos jogos de beisebol, durante a Segunda Guerra Mundial. Ninguém vai a um evento esportivo para expressar seu patriotismo.”
Mas o astrônomo voltado a esclarecimentos científicos e quebra de crenças, Carl Sagan, é contrário a essa afirmação. Sagan pensa que grande parte do significado dos eventos esportivos tem algo a ver com patriotismo e nacionalismo.
HISTÓRIA: Da Caça aos Jogos de Multidão
Os primeiros eventos atléticos organizados de que se tem notícia remontam à Grécia pré-clássica de 3500 anos atrás.
O fanatismo ao Jogo já era tão forte, que durante os Jogos Olímpicos originais, eram suspensas todas as guerras entre as cidades-estados gregas. Os homens participavam nus, e não era permitida a presença de espectadoras.
No século VIII a.C., os jogos Olímpicos consistiam em corridas, salto, lançamento de objetos e luta – às vezes até a morte.
A caçada é tradicionalmente considerada um esporte, desde que não se coma o que se captura – uma condição que os ricos têm muito mais facilidade em satisfazer do que os pobres. Desde os tempos dos Faraós, praticado pela aristocracia militar.
Os percussores do futebol americano, futebol, hóquei e outros esportes semelhantes eram desdenhosamente chamados “jogos de multidão”, reconhecidos como substitutos para a caçada – porque os jovens que trabalhavam para viver eram barrados nas caçadas.
As armas das primeiras guerras foram instrumentos de caça.
Os esportes de equipe não são apenas ecos estilizados das guerras antigas. Também satisfazem um desejo quase esquecido de caçar. Como as nossas paixões pelos esportes são tão profundamente e tão amplamente distribuídas, é provável que façam parte de nosso hardware – não estão em nossos cérebros, mas em nossos genes.
Os 10 mil anos que se passaram desde a invenção da agricultura não são tempo suficiente para que essas predisposições tenham evoluído e desaparecido. Se quisermos entende-las, devemos retroceder ainda mais.
A espécie humana tem centenas de milhares de anos (a família humana tem vários milhões de anos). Levamos uma vida sedentária – baseada no cultivo da terra e na domesticação de animais – apenas nos últimos 3% desse período, no qual se encontra registrada toda a nossa história. Nos primeiros 97% de nossa existência sobre a Terra, quase tudo o que é caracteristicamente humano veio a ser.
Existem comunidades que vivem como antigamente até hoje, e acredito que possamos aprender observando:
Elas não caçam por esporte, e basicamente não compreendem este tipo de vontade no esporte – é como se elas já satisfizessem o seu instinto. Dentro da caça, realizada pelos homens principalmente (isto talvez aponte o interesse maior dos homens pelos esportes como futebol - homens poderiam sentir instintivamente, já as mulheres culturalmente), existem vários tipos de ligações com as modalidades e estratégias de jogos.
SEMELHANÇAS: Combates e Jogos
Nas iniciações dos mais jovens, eles sofrem incisões para representar os símbolos do seu grupo (emblemas) e seu papel no grupo. A tatuagem costuma ser desenhada no braço ou no peito.
Utilizam de arremessos de objetos, arco e flecha e emboscadas para caçar. O trabalho em equipe é essencial.
Se comunicam por uma linguagem de sinais.
Repudiavam tanto o medo quanto o júbilo, pois as emoções atrapalhavam a caça. Era necessário criar um distanciamento emocional entre a caça e o caçador.
POSTURA INTENCIONAL
Usando a consideração de Carl Sagan:
Durante milhões de anos nossos ancestrais masculinos andaram correndo por toda parte, atirando pedras nos pombos, perseguindo filhotes de antílopes e agarrando-os em luta corpo a corpo, formando uma única linha de caçadores a correr e a gritar contra o vento para aterrorizar uma banda de javalis perplexos.
Imaginem que a vida deles depende de seu talento de caçador e do trabalho em equipe.
Hooligans (o filme) mostra que depois de despertar este sentimento adormecido pela Postura Intencional, é difícil negar o prazer que nos foi condicionado pelos genes - que era apenas o suborno para que sobrevivamos melhor.
Grande parte da cultura é tecida no tear da caçada. Bons caçadores são bons guerreiros. Então, depois de um longo período – digamos, alguns milhares de séculos -, uma predisposição natural tanto para a caça quando para o trabalho em equipe vai aparecer em muitos meninos recém nascidos.
Não que a maneira de lascar a pedra para formar a ponta de uma lança ou o modo de emplumar uma flecha esteja em nossos genes. Tudo isso é ensinado ou inventado. Mas sim o gosto pela caçada faz parte do nosso hardware. A seleção natural ajudou a transformar nossos ancestrais em caçadores magníficos.
A evidência mais clara do sucesso do estilo de vida caçador-coletor é o simples fato de que se espalhou para seis continentes, e durou por milhões de anos (para não falar da tendência à caça dos primatas não humanos).
Depois de 10 mil gerações em que a matança de animais foi a nossa defesa contra a ameaça de morrer de fome, essas inclinações ainda devem estar conosco. Sentimos vontade de empregá-las, mesmo vicariamente. Os esportes de equipe nos fornecem um meio de satisfazer esse desejo.
Alguma parte de nosso ser deseja se juntar a um pequeno grupo de irmãos para realizar uma aventura ousada e intrépida. Podemos observar essa característica nos jogos de computador, e nos RPGs que fazem sucesso entre crianças e adolescentes.
As virtudes viris tradicionais – a engenhosidade, a modéstia, a precisão, a coerência, o trabalho em equipe, o amor pela vida ao ar livre – eram todas comportamento de adaptação nos tempos dos caçadores-coletores. E ainda existe um simulacro de admiração diante essas características, embora quase tenhamos nos esquecido da razão.
PREOCUPAÇÕES
Além dos esportes, há poucas saídas para dar vazão a essas tendências. Nos meninos, ainda os vemos pulando pelos telhados das casas; andando de motos sem capacetes; criando encrenca com o time vencedor numa celebração depois do jogo. Mas na ausência de um controle moderador, esses antigos instintos podem ter conseqüências um pouco desastrosas. O poder desse instinto de caça é preocupante.
O caçador-coletor não passava por riscos econômicos; por serem nômades não possuíam muita coisa para ser cobiçada. Assim não se experimentava muito o roubo, a cobiça, a inveja. Esses males sociais eram considerados doenças mentais – e eram resolvidos entre a própria comunidade. Não havia chefes ou hierarquias.
Não havia nada contra o que se revoltar, comparado com o nosso tempo. Esses novos tempos trazem predisposições para o acumulo de sentimentos.
(Atualmente, acontece o contrário, o próprio esporte desperta tanto a vazão quanto é o signo do nosso instinto. Um amigo da faculdade me disse outro dia que fica com inveja e ao mesmo tempo com raiva do jogador de um time opositor ao seu, quando faz uma determinada jogada impressionante contra o seu time. Diz que o motivo é por desejar que aquele jogador fosse do seu time, e por odiar o modo o qual ele pode humilhar seu time – o time que ele torce é como se fosse ele próprio, esta é a experiência dele.)
Compartilho da preocupação de Carl Sagan, se a noite de quarta feira de futebol não for suficiente para o homem moderno, vestido de jeans. O que irá satisfaze-lo no futuro?
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